terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Honda X-ADV 750 2025 à prova

Jacinto cansou-se de Paris — das campainhas elétricas, das máquinas que faziam tudo menos dar sentido à vida. O seu palácio na Avenida dos Campos Elísios era um museu da modernidade, mas o homem, esse, murchava por dentro. Só quando regressou às serras, à terra que cheira a rosmaninho e a ferro velho ao sol, é que voltou a respirar.


E é curioso como, mais de um século depois, o mesmo dilema se repete — mas agora com motores e capacetes. A Honda X-ADV 2025 é, de certa forma, o capítulo contemporâneo dessa parábola: a união improvável entre a cidade e a serra, entre a sofisticação e o pó. Uma moto que, como o Jacinto reconciliado, reencontra a alma no equilíbrio entre tecnologia e instinto. 

A CIDADE E AS SERRAS 
A Honda X-ADV 750 é uma velha conhecida do nosso ESCAPE. Já a vimos, já a sentimos, em três ocasiões diferentes, cada uma com a sua personalidade, cada uma com a sua evolução. E agora, quatro anos depois, ela regressa, não como um déjà-vu, e sim como uma promessa de algo novo — mais refinada, mais ágil e ainda assim com o mesmo carácter mestiço que a tornou única


Esta é uma moto que não se deixa encaixar em zonas fechadas. Apresenta uma mistura fina de estilos: urbana quando a cidade a exige, roadster quando a estrada chama, exploradora quando o campo surge à frente, e até turística quando o horizonte se estende mais além. Cada momento revela essa versatilidade. 


Na cidade, a X-ADV move-se com elegância quase literária — automática, fluida, urbana. Mas basta uma curva aberta, um caminho de terra, e ela liberta-se do verniz citadino. O motor sobe de tom, o DCT lê o pensamento, e o piloto sente o sangue quente do Douro a correr-lhe nas veias. 


As novidades de 2025 não se limitam a detalhes cosméticos. Esta Honda deseja mais eficácia, um comportamento mais sólido em cada elemento da moto, e a condução ganha uma leveza inesperada. É uma X-ADV que continua a desafiar as categorias, a provocar os sentidos e a mostrar porque é, há tantos anos, uma referência de carisma e inovação em duas rodas. A Honda X-ADV 750 não é apenas uma moto. É uma provocação, um veículo que desafia as categorias e as convenções.


Desde 2017 que a Honda decidiu misturar o que parecia impossível: a liberdade e a robustez de uma trail com a utilidade prática de uma scooter de topo. O resultado? Uma moto que olha para a cidade e para a aventura com o mesmo desdém, e que exige atenção de quem insiste em rotular tudo. 

NOVIDADES BOAS
Em 2025, a X-ADV não se contenta em existir — ela afirma-se. O chassi foi redesenhado, mais agressivo, mais decidido, como quem diz “estou aqui e faço tudo”. Os faróis duplos de LED com DRL e piscas integrados não são apenas tecnologia; são um grito de visibilidade que marca presença, seja sob a luz do sol ou no nevoeiro de uma estrada de montanha. O banco, com 10% mais espuma de uretano, não é só conforto: é confiança, cada centímetro pensado para que o piloto sinta que domina a moto, mesmo quando a cidade parece um labirinto. 


O espaço debaixo do banco, com 22 litros e ficha USB-C, e o porta-luvas são detalhes que se tornam essenciais: a X-ADV é prática, mas nunca banal. O ecrã TFT de 5 polegadas e a conetividade Honda RoadSync transformam cada viagem numa extensão do teu mundo digital, com navegação e funcionalidades inteligentes sempre ao alcance da mão, controladas por um simples interrutor no punho esquerdo. 


A condução é uma declaração: o motor bicilíndrico paralelo distribui potência com precisão cirúrgica — 43,1 kW e 69 N·m de binário, mas com uma suavidade que só a caixa DCT e os novos ajustes a baixa velocidade conseguem dar. Os modos de condução, com controlo de tração variável, permitem moldar a moto ao teu estado de espírito — da cidade à estrada de gravilha, da chuva ao sol, sem concessões. 

ACTUALIZDA E REFINADA 
O sistema de dupla embraiagem DCT da X-ADV 2025 foi atualizado para oferecer arranques mais suaves e controlo otimizado a baixas velocidades, especialmente abaixo de 10 km/h, facilitando inversões e manobras urbanas. A nova tecnologia calcula eletronicamente a pressão do óleo na câmara do êmbolo da embraiagem e aplica o feedback de forma mais precisa, garantindo uma resposta mais delicada e direta. 

As trocas de velocidade são consistentes, rápidas e praticamente sem interrupção de tração, eliminando choques e transmitindo sensação de mudanças suaves e contínuas. Os benefícios incluem maior durabilidade da caixa, impossibilidade de deixar o motor ir abaixo, redução do stress urbano e menor fadiga do condutor, permitindo mais concentração na condução, nas curvas e na travagem. 

O DCT oferece dois modos de condução: Automático (AT), que ajusta a mudança conforme velocidade, rotação e engrenamento, e Manual, que permite controlar as patilhas do punho esquerdo. Graças ao Throttle By Wire (TBW), há cinco definições de mudanças automáticas:
• Nível 1: mais suave, baixa rotação, ligado ao modo RAIN. 
• Nível 2: ligado ao modo STANDARD, equilíbrio entre conforto e desempenho. 
• Nível 3: entre STANDARD e SPORT. 
• Nível 4: mais agressivo, mudanças a alta rotação, ligado ao modo SPORT. 
• Modo GRAVEL: padrão mais desportivo, com patinagem controlada das embraiagens para condução fora de estrada. 

O modo USER permite configurar qualquer padrão DCT combinado com ajustes de potência, travagem-motor e sistemas ABS/HSTC, oferecendo personalização total para o condutor.

USO E ABUSO
A acessibilidade continua a ser um dos pontos menos consensuais da X-ADV. Subir e descer desta moto exige sempre um pequeno exercício físico, quase um ritual — não é propriamente intuitivo, nem particularmente “acolhedor” para quem salta para cima dela várias vezes ao dia. O espaço disponível para pernas e pés permanece limitado, e isso sente-se também na própria proteção aerodinâmica, que não atinge a eficácia de outras propostas da gama Honda, como a Forza 750. Há compromissos assumidos desde o primeiro momento, e a X-ADV não os esconde.


Todavia mal se roda a roda da frente, muda tudo: a moto revela uma agilidade soberba, uma leveza quase desconcertante. Na cidade, ela põe-se a jeito, domina rotundas, corredores de trânsito e curvas apertadas com uma facilidade que parece desafiar a sua própria geometria. O DCT, esse velho conhecido em constante evolução, está mais fino do que nunca — mais intuitivo, mais adaptado a diferentes estilos, mais inteligente nas transições. E quando a estrada abre, a X-ADV transforma-se: divertida, solta, pronta a dançar entre ritmos. Com pneus mistos, salta do asfalto para a terra e da terra para o asfalto com uma naturalidade que deveria envergonhar algumas supostas “adventures”. 


Desta vez abusei do fora de estrada — estradões rápidos, zonas com mais dificuldade — e a moto respondeu sempre com uma serenidade impressionante. O modo GRAVEL do DCT está afinado ao ponto de parecer leitura de pensamentos. Para o utilizador comum, aquilo que se sente é simples: versatilidade fora do normal. 


E depois há o detalhe que a distingue de todas as outras: a X-ADV é única. É icónica. Já ultrapassou debates estéreis sobre se é moto, scooter ou um híbrido indecifrável. Não é nada disso: é uma X-ADV. Ponto final. Parágrafo. Uma moto que criou o seu próprio território e o ocupa com autoridade. E conduzir, diariamente, um ícone — sobretudo um que evoluiu sem perder o carácter — é uma dessas pequenas alegrias que fazem parte do privilégio de quem vive em duas rodas. 

O PREÇO DA EXCLUSIVIDADE
O carácter polivalente da X-ADV 2025 - sorveu quatro litros redondos de sumo de dinossauro por cada cem quilómetros de eficácia - é impossível de ignorar. Cada linha, cada ângulo do chassis, cada detalhe do para-brisas ajustável com uma mão grita inovação, consciência ambiental e, acima de tudo, liberdade sem limites.

A X-ADV 750 continua a ser única. Não é apenas uma moto de aventura, nem apenas uma scooter urbana. É ambas, e muito mais. É a moto que diz que não há compromissos a fazer: se queres liberdade, utilidade e atitude em doses iguais, ela está aqui para mostrar-te como se faz. A Honda X-ADV 750 para 2026 mantém as mesmas características mecânicas do ano anterior, ou seja da versão agora provada. 

O foco das atualizações para 2026 está no estilo e na personalização. A X-ADV passa a estar disponível em três esquemas cromáticos clássicos: Preto Graphite, Cinzento Mate Deep Mud e Branco Pérola Glare, enquanto a grande novidade é a Edição Especial Tricolor, com grafismos em azul e vermelho sobre base Branco Mate Pérola Glare, uma homenagem às lendárias Honda Transalp e Africa Twin. Preço? 13.500€. 

Mantendo o compromisso com a sustentabilidade, a X-ADV continua a utilizar plásticos reciclados DurabioTM em várias peças de carenagem, contribuindo para a redução das emissões de CO₂ associadas ao processo de pintura. Para completar, estará disponível uma gama revista de acessórios, incluindo um novo encosto para o passageiro e um escape Akrapovič slip-on, permitindo aos condutores personalizar ainda mais a sua moto. 

Raterometro ******** (8/10)

domingo, 7 de dezembro de 2025

Entender o Raterómetro

O Raterómetro começou quase como uma brincadeira. Surgiu, algures, numa Prova qualquer, como uma ideia de fazer algo diferente: pontuar. Ter a coragem de avaliar, atrever-se a dar uma nota a cada moto de forma clara e honesta. No início era apenas um exercício lúdico, um gesto descontraído e com o tempo, a escala começou a ganhar vida própria. 

Foto: Gonçalo Fabião

Hoje, os leitores e seguidores do blogue já falam no Raterómetro: comentam que determinada moto recebeu um 7 ou um 8, ou que outra atingiu uma nota excecional, um 9. O feedback tem sido positivo e consistente. O que começou como uma brincadeira está a transformar-se em algo sério, uma ferramenta que acompanha cada Prova, que ajuda a transmitir de forma imediata a experiência de condução. 

Passados alguns meses de utilização, o Raterómetro está claramente sedimentado, cristalizado no ADN do blogue. As análises já não vivem sem ele, e está claro que veio para ficar. É, por isso, o momento certo para fazer um esclarecimento: explicar o que é, como funciona e por que não se compara a outras escalas de avaliação. 

UMA ESCALA À PARTE 
Foto: Gonçalo Fabião
No mundo da avaliação, existem diversas formas de medir experiências, desempenhos ou satisfação. Entre as mais conhecidas estão a escala académica, de 0 a 20, e a escala NPS – Net Promoter Score, de 0 a 10. Ambas são úteis, mas cada uma segue uma lógica muito específica. 

A escala académica é familiar a todos nós: avalia desempenho, conhecimento ou competência. Cada ponto tem valor absoluto. Por exemplo, 16 é melhor que 14, 14 melhor que 12, e assim por diante. A escala é linear e quantitativa: mede o resultado de um esforço ou a qualidade de um desempenho. Não mede emoção, prazer ou lealdade — apenas desempenho. 

O NPS, por outro lado, é uma escala de lealdade e satisfação. Pergunta-se: “Qual a probabilidade de recomendar este produto ou serviço a um amigo ou colega?” A escala divide os clientes em três grupos: 
• Promotores (9–10): entusiastas que recomendam activamente. 
• Passivos (7–8): satisfeitos, mas neutros. 
• Detractores (0–6): insatisfeitos, potencialmente críticos. 
O NPS mede intenção de recomendação, não experiência objectiva ou desempenho académico. Cada ponto não é linear; importa para determinar o grupo em que o cliente se encaixa. 

PRAZER E IMPORTÂNCIA 
O Raterómetro, a escala que utilizamos no blogue, não é uma escala académica nem um NPS. É uma escala pensada para medir o prazer e a importância do que uma moto nos proporciona, mas com nuances próprias. Funciona assim: 

• Escala de 0 a 10, mas com regras emocionais e qualitativas: 
• 10: reservado apenas para obras-primas, motos históricas que entram para o cânone do motociclismo.
• 9: motos que definem padrões, estabelecendo referência dentro do seu segmento. 
• 7 e 8: avaliações muito positivam; a esmagadora maioria das motos cai aqui. É aqui que encontramos motos boas, consistentes, muito agradáveis. 
• 5 e 6: motos que agradam, mas ficam aquém do padrão actual de prazer e qualidade de condução.
• Abaixo de 5: motos com problemas evidentes, de desempenho, segurança ou qualidade de construção. Na prática, no estado actual do motociclismo, é quase impossível encontramos motos neste patamar. 

CARACTERÍSTICAS DO RATERÓMETRO
1. Não é linear: um 8 e um 7 são positivos, mas a diferença não é meramente matemática — envolve experiência subjectiva. 
2. Não é académico: não mede competência ou desempenho de forma objectiva, nem pretende classificar absolutamente todas as motos. 
3. Não é NPS: não mede lealdade ou intenção de recomendação, embora possa influenciar a recomendação de um leitor. 
4. É uma escala de importância e prazer: mede o impacto que a moto tem sobre o mortociclista que a provou, o gozo que proporciona, a satisfação global. 
5. Tem um componente histórico: valores como 9 ou 10 não são dados frequentemente; só motos que marcam época ou redefinem padrões entram aqui. 

Foto: Gonçalo Fabião

O Raterómetro é assim uma escala emocional e qualitativa, uma tentativa de medir experiência subjetiva elevada a critérios quase simbólicos. Não interessa apenas “quanto a moto é rápida ou confortável”, mas quanto a moto importa, surpreende e entusiasma. 

UMA CLASSIFICAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS 
É uma escala de relevância e intensidade, onde a emoção do motociclista define o valor, mas sempre com critérios internos consistentes: obras-primas, referência, excelente, agradável, aquém do padrão, insatisfatório. 
Em termos práticos, podemos dizer que: 

• É emocionalmente ponderada, não matemática.
• Classifica experiências, não resultados objetivos.
• Coloca o prazer de condução e o impacto da moto no centro da avaliação. 
• Mantém uma disciplina interna: o 10 é sagrado, o 9 reconhece excelência, 7 e 8 são bons, 5 e 6 são medíocres, abaixo de 5 raríssimo. 

Foto: Gonçalo Fabião

Em suma, o Raterómetro é uma escala de gozo e importância, pensada para avaliar a experiência motociclística de forma subjectiva, mas consistente, capaz de separar o excelente do extraordinário e o agradável do medíocre, sem cair na objectividade fria de notas académicas ou na lógica de lealdade do NPS.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Carta Aberta à Miss Yoshimura

Querida Miss Yoshimura. Deixa-me contar-te a história de um homem que, com apenas 1,60 metros de altura, desafiou as leis da física e da lógica para conquistar o impossível. O seu nome é Gaston Rahier, e ele venceu o Rally Paris-Dakar duas vezes, em 1984 e 1985, numa época em que as motos eram autênticos colossos de metal e potência. 


A altura: mais do que uma medida física 
A altura é frequentemente vista como um reflexo da força ou da capacidade de alguém. No entanto, ao longo da história, muitos homens e mulheres de estatura modesta deixaram uma marca indelével no mundo. Por exemplo, o “louco” Napoleão Bonaparte, frequentemente retratado como baixo, tinha uma altura média para a sua época e foi um líder militar e político de grande influência. Outro exemplo é Mahatma Gandhi, com 1,65 metros, cuja estatura física não impediu que se tornasse um dos maiores líderes espirituais e políticos da história.   

Gaston Rahier: o pequeno gigante do Dakar 
Antes de se tornar uma lenda do Dakar, Rahier construiu uma carreira sólida no motocross. Vencedor de três campeonatos mundiais de 125cc consecutivos entre 1975 e 1977, também conquistou múltiplos títulos no motocross das nações. Após um grave acidente em 1982 que quase lhe custou a mão, Rahier não se deixou abater. Em vez disso, voltou-se para o Dakar, onde, com coragem e destreza, venceu as edições de 1984 e 1985. 

As motos da época: gigantes sobre duas rodas 
As motos do Dakar nos anos 80 eram imponentes. A BMW r80 g/s, por exemplo, tinha um peso de 230 kg e uma altura de banco que exigia habilidade e força para manobrar. Rahier, com sua estatura de apenas 1,60 metros, precisava montar a moto de uma maneira única: caminhava ao lado dela, colocava um pé no pedal e, com um movimento ágil, passava a perna por cima do banco para iniciar a corrida. Esta técnica, embora inusitada, era uma demonstração de sua adaptabilidade e determinação. 


A verdadeira medida do sucesso 
O que tudo isto nos ensina, Miss Yoshimura, é simples: não é a altura, nem o tamanho do corpo, que define um vencedor — é a força de carácter, a persistência e a coragem de enfrentar desafios que parecem maiores do que nós. Rahier provou pelo motociclismo que com determinação, talento e paixão, até os obstáculos mais altos podem ser conquistados. Ele enfrentou desafios que muitos considerariam intransponíveis e, com habilidade e coração, conquistou o impossível. 

Portanto, quando olhares para uma moto gigante ou para uma meta que parece inalcançável, lembra-te do pequeno gigante que venceu o Dakar. A verdadeira grandeza está na mente, no coração e na vontade de deixar a tua marca, independentemente da estatura. 

Assim como Rahier, tu também tens dentro de ti a capacidade de superar qualquer obstáculo. E na verdade até sabes bem disso mesmo. A tua altura não define quem tu és ou o que podes alcançar. O que importa é a tua determinação, o teu espírito e a tua vontade de seguir em frente, independentemente das adversidades. 

A lição é clara: o tamanho de um campeão não se mede em metros, mas em coragem, garra e ousadia. Já conheces de cor e salteado a minha recomendação: “faz-te grande!”! 

Com admiração e respeito.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Um ensaio crítico sobre o ódio e a coexistência das motos elétricas

Apresentada em 2025 – e provada pelo ESCAPE nos últimos dias - a LiveWire S2 Alpinista (link) é mais do que uma moto elétrica; é um símbolo, um novo marco de performance e design que, ironicamente, se tornou um para-raios para a resistência e o ódio de uma parte da comunidade motociclística tradicional.


Este pequeno ensaio tenta mergulhar na história, na emoção e na análise social deste confronto cultural, examinando a aversão às novas tecnologias e defendendo um futuro de coexistência e respeito. 

O SOM DA HISTÓRIA E A CULTURA DAS OCTANAS 
O motociclismo nasceu no final do século XIX, e a sua alma cultural consolidou-se ao longo do século XX. A moto não é apenas um meio de transporte; é uma extensão do corpo, um veículo de liberdade, rebeldia e identidade.


A cultura moto foi cimentada por ícones, filmes e o som inconfundível do motor a explodir. O lema “Loud Pipes Save Lives” transcendeu a mera segurança para se tornar um grito de guerra, simbolizando a presença, a força e a essência da máquina. 

A paixão pela gasolina, pelas viagens longas, pela mecânica e pelo cheiro a óleo e octanas tornou-se um ritual sagrado. Para muitos, o motociclismo é a fusão de metal, fogo e combustão – uma experiência visceral onde o som do motor V-Twin ou do quatro cilindros não é ruído e sim música, a banda sonora da estrada. Qualquer coisa que ameace este ritual é vista, não como progresso, mas como sacrilégio. 

A CHEGADA DA ELETRICIDADE
A origem das motos elétricas remonta a experiências rudimentares, mas a sua verdadeira emergência no mercado deu-se no século XXI, impulsionada pela dita urgência climática e pela evolução tecnológica. 


Marcas pioneiras como a Zero Motorcycles e, posteriormente, a própria LiveWire (nascida como um projeto da Harley-Davidson e transformada em marca independente) começaram a prometer um futuro de aceleração instantânea, zero emissões e manutenção simplificada. 

Modelos como a LiveWire ONE e a mais recente LiveWire S2 Alpinista surgem com propostas técnicas impressionantes: 84 CV, um torque instantâneo de 263 Nm e uma aceleração de 0 a 96 km/h em apenas 3,0 segundos. No entanto, carregam a sombra do principal desafio: a autonomia, que na Alpinista, por exemplo, é de cerca de 194 km no ciclo urbano e 115 km na autoestrada, com tempos de carregamento (20-80% em 78 minutos num carregador de Nível 2) que ainda não satisfazem o ideal da viagem "sempre a despachar" do motociclista tradicional. 

CULTURA, EMOÇÃO E A RESISTÊNCIA À PERDA 
A aversão e o ódio que as motos elétricas enfrentam nas redes sociais e em fóruns como o Reddit ou Facebook não se baseiam primariamente na tecnologia e sim na identidade cultural e na emoção. 

Medo da perda do Ritual: O motociclista tradicional valoriza o ato de reabastecer a mota, de sentir o cheiro da gasolina, de ouvir o motor. O silêncio quase total da moto elétrica, a necessidade de "ligar à corrente" em vez de "encher o depósito", destrói o ritual. A moto elétrica é vista como asséptica, desprovida da "alma" mecânica. 


Nostalgia e identidade: para os “petrolheads”, a moto a combustão é uma relíquia viva, uma ligação à história. Trocar o som do motor pelo zumbido elétrico é como substituir uma guitarra elétrica por um sintetizador num concerto de rock – é uma traição à essência do género. A identidade, que muitas vezes é construída em torno da robustez e do barulho do motor, sente-se ameaçada. 


Preconceito social: A moto elétrica é, por vezes, estigmatizada como um brinquedo caro, para hipsters ou entusiastas da tecnologia, falhando em capturar a aura de dureza e aventura que a moto a gasolina construiu ao longo de décadas. 

O PALCO DIGITAL: CRÍTICA E ANÁLISE SOCIAL DO ÓDIO 
A resistência encontra o seu palco mais ruidoso e destrutivo nas redes sociais. Comentários agressivos, memes depreciativos e o uso da palavra "ódio" proliferam. Esta manifestação digital é um reflexo de uma sociedade que polariza o debate e demoniza o que é novo ou diferente. É crucial questionar a validade deste ódio. A S2 Alpinista não exige a morte da Harley-Davidson a gasolina; propõe uma alternativa. O motociclismo, na sua essência, celebra a liberdade individual. 


A liberdade de escolha é o pilar do motociclismo. Um motociclista é livre de escolher a sua máquina, a sua rota e o seu som. O ódio é o oposto da liberdade. A alternativa não é uma ameaça, mas uma expansão do horizonte. O debate deve sair da esfera da emoção irracional e entrar no campo da sã coexistência. O motociclismo é um guarda-chuva vasto que deve abrigar tanto o entusiasta das octanas quanto o adepto do silêncio elétrico. 

DESAFIOS PRÁTICOS E SIMBOLISMO DE MERCADO 
Os desafios práticos persistem e alimentam o ceticismo. A autonomia e a infraestrutura de carregamento são os calcanhares de Aquiles. A adoção lenta do mercado de motos elétricas é um sintoma disto. 


O impacto simbólico mais forte desta resistência veio há semanas: a suspensão da classe de motos elétricas (MotoE) no MotoGP a partir do final da temporada. A Dorna e a FIM justificaram a decisão com a falta de audiência e o mercado de motos elétricas de alto desempenho que “não evoluiu como esperado”. Esta suspensão, embora temporária e sujeita a reavaliação, foi vista pelos críticos como uma vitória simbólica da tradição sobre a inovação, reforçando a narrativa de que o motociclismo elétrico ainda não conquistou o coração dos fãs. No entanto, é importante sublinhar que o progresso tecnológico é imparável e a eletrificação no transporte é uma inevitabilidade histórica. 

COEXISTÊNCIA E RESPEITO 
O motociclismo é, fundamentalmente, uma comunidade unida pela paixão por duas rodas. Quer se trate do rugido de um motor a combustão que ecoa a tradição, quer do silêncio futurista da LiveWire S2 Alpinista, a emoção de curvar e a alegria da estrada continuam a ser o elo comum


Quase em 2026, a sociedade exige empatia, educação e respeito pelas escolhas individuais. A tecnologia avançará. Os motores elétricos ficarão mais potentes, com maior autonomia e carregamentos mais rápidos. O futuro não é uma escolha entre A ou B, mas sim a coexistência de A e B. 

A verdadeira liberdade no motociclismo não reside no tipo de motor, e sim na capacidade de escolher o que nos faz sentir a emoção da estrada. O desafio é simples: todos aqueles que amam andar de moto, devem priorizar a comunidade e o respeito mútuo, permitindo que a tradição e o progresso acelerem lado a lado.