domingo, 19 de outubro de 2025

CFMOTO 800MT-X à prova

Há pouco mais de três décadas, a CFMOTO nascia na longínqua Hangzhou, mais uma marca chinesa que parecia destinada a ficar no imenso mercado interno. Mas os tempos mudam, e mudam depressa. O que começou como fabricante de motores e componentes cresceu, consolidou-se e ousou atravessar fronteiras.


Hoje, a CFMOTO já não pede licença para entrar no palco mundial: entra de cabeça erguida, aliada a gigantes como a KTM, trazendo motores partilhados, tecnologia refinada e uma nova linguagem de design. Devagar, o preconceito começa a dissipar-se, e no lugar dele surge respeito. Respeito porque a marca deixou de ser promessa — é presença. 

MÚSCULO, RESISTÊNCIA E AMBIÇÃO
A CFMOTO 800MT-X não nasceu para desfilar em cafés ou apenas para impressionar ao ralenti. Esta é a moto que traz no peito o coração austríaco — o bicilíndrico paralelo de 799 cc herdado da KTM — mas que pulsa agora ao ritmo chinês, embalado numa ciclística robusta, com suspensões de origem local de curso generoso (há que jure serem idênticas as WP), travões J.Juan e uma eletrónica que não deixa nada ao acaso. 


Estamos perante 90 cavalos de força elástica, distribuídos de forma linear, e capazes de rugir quando a estrada se abre ou quando a terra se solta. O quadro é um manifesto de resistência. As rodas raiadas de 21’’ à frente e 18’’ atrás são convite aberto ao fora de estrada. O depósito de 22 litros promete longas jornadas, e o painel TFT a cores, com conectividade plena, lembra-nos que até nas mais áridas pistas do deserto há lugar para tecnologia. Contem com quase 230 Kg de peso em ordem de marcha


Seja na estrada asfaltada que corta o Alentejo em linha reta até perder de vista, seja no carreiro pedregoso de uma serra esquecida, a 800MT-X não se encolhe. Posiciona-se no competitivo universo das maxi-trail de média/alta cilindrada, esse território fértil onde gigantes como a Yamaha Ténéré 700 World Raid, a KTM 890 Adventure R e a Honda Africa Twin marcam presença. 


Mas a diferença da CFMOTO está na ousadia do equilíbrio: oferece de série aquilo que muitas rivais entregam como opção cara. Quickshifter, modos de condução, controlo de tração afinado, ABS desligável para o fora de estrada, cruise control… tudo aqui está preparado para o motociclista que quer sair e partir já, sem gastar mais um cêntimo em extras. 

PARA QUE SERVE A 800MT-X? 
Serve para ir mais longe. Para somar quilómetros em estrada, atravessar fronteiras e não hesitar quando o asfalto acaba. É a companheira das grandes viagens, dos dias de exploração solitária ou das epopeias partilhadas em grupo. Uma moto que não teme poeira, lama, alcatrão derretido ou chuva cerrada. 


Serve para o motociclista inquieto, aquele que não suporta ver o horizonte e ficar parado. Serve para o aventureiro que sonha com Marrocos, com a Estrada Nacional 2, com os Balcãs ou com a Patagónia. Mas serve também para quem, no dia-a-dia, quer uma moto equipada até aos dentes e capaz de enfrentar o trânsito matinal com a mesma confiança com que enfrenta um trilho pedregoso ao fim de semana. 



É a moto para quem reconhece que a aventura não é monopólio das marcas históricas. É para quem aceita que uma marca chinesa pode entregar qualidade, emoção e confiança. É para quem tem a coragem de escolher diferente e o coração disposto a bater ao ritmo da descoberta. 

UMA MOTO QUE PEDE ESTRADA E ROTAÇÕES 
Há motos que nos recebem com um sorriso fácil, quase convidativo. A CFMOTO 800MT-X não é assim. O primeiro impacto é desafiante, um olhar de frente para uma maxitrail de presença larga, de ombros levantados, de design arrojado que parece querer medir forças connosco antes mesmo de darmos à ignição. 

E logo ali, no primeiro toque, percebemos: esta é uma moto grande, física, exigente. Aos 1,80m ainda ficamos a meio caminho de pousar os dois pés totalmente no chão. É uma altura que, parada, pesa mais na mente do que no corpo — porque em andamento, curiosamente, a moto mostra-se dócil, equilibrada, ágil até nas pequenas manobras. No entanto não nos iludamos: no caos das ruas estreitas de Lisboa, no empedrado irregular de tantas cidades portuguesas, esta 800MT-X não será a companheira mais prática do dia-a-dia. Talvez seja por isso que raramente a vemos a rolar em meios urbanos. 

E quando a estrada se abre, aí sim, ela revela o seu verdadeiro palco. A posição de condução é um trono relativamente confortável, com um guiador bem colocado e um encaixe natural dos pés. Já a proteção aerodinâmica, embora generosa, não se entende bem com capacetes de pala: vibrações incómodas perturbam a calma do vento. 

Ainda assim, facilmente ajustamos o ecrã — um detalhe simples que mostra o cuidado da marca. Com um capacete integral, o desconforto desaparece e a viagem flui. E flui porque o motor pede isso mesmo: rotação, estrada, quilómetros. A partir das 4.000 ou 5.000 rotações, ele engole o asfalto com voracidade, entrega binário e potência com um ímpeto que nos arranca um sorriso dentro do capacete. A ciclística acompanha este fôlego com elegância, apoiada em suspensões confortáveis, reguláveis e capazes de dar ao condutor o acerto que deseja. 


Nenhuma moto é perfeita, e a 800MT-X também guarda no alforge alguns detalhes menos conseguidos. Um deles já o referi: a turbulência aerodinâmica quando usamos capacetes com pala. É um daqueles pequenos incómodos que não estraga a experiência, mas que nos obriga a procurar ajustes e outro equipamento. Depois, há um ponto mais sensível: o calor que se liberta do motor e que se sente, de forma bastante evidente, junto à perna esquerda. Em dias de maior temperatura ou no pára-arranca das cidades, esse sopro quente transforma-se num companheiro indesejado. E, por fim, o banco. Ao início, parece confortável, mas com o acumular dos quilómetros revela alguma rigidez que acaba por se fazer notar. 


São detalhes que não ensombram o conjunto, mas que merecem atenção em futuras evoluções. Até porque, quando uma moto nasce tão ambiciosa, cada pequeno retoque faz toda a diferença no caminho da excelência. 

TURISMO E AVENTURA
Fora de estrada? Sim, mas com limites. Esta, na nossa opinião, não é uma enduro disfarçada e sim uma moto de turismo de aventura. No cascalho largo, nos caminhos de terra generosos, aceita o desafio e mostra-se capaz — para quem tem unhas, como se costuma dizer. Mas não é para brincadeiras de quintal: a sua dimensão e peso não a recomendam para grandes malabarismos fora do alcatrão. O seu destino é outro. Esta é uma moto para viagens longas, para rotas que não acabam quando o asfalto termina, para aventuras que pedem bagagem, cruise control, quickshifter e a ligação natural à tecnologia. Turismo, sim — todavia turismo que ousa atravessar fronteiras, literalmente e metaforicamente. 


Um dos melhores aspetos fica para o fim, sendo um ponto que não podemos ignorar: o preço. A CFMOTO 800MT-X é muita moto por cerca de 9.000 euros. Sendo económica também no dia a dia ao sorver apenas pouco mais de quatro litros de liquido inflamável doirado por cada cem quilómetros de personalidade esbanjada. 


A CFMOTO 800MT-X é uma proposta que junta motor, ciclística, eletrónica e acabamentos dignos de motos de segmentos mais caros. É um absoluto statement da marca: mostrar que se pode entregar qualidade e ambição sem pedir um cheque a dobrar e uma promessa de viagem, de aventura, de estradas que nos levam mais longe.

Raterómetro ******* (7/10)

sábado, 18 de outubro de 2025

Estará a Hero a chegar a Portugal?

Há histórias que se contam com rugidos de motores, outras com o sussurro das engrenagens entre o pó e o asfalto. Esta é das duas. É a saga de uma Índia que construiu impérios sobre duas rodas, e de Espanha que aprendeu a colocar essas máquinas nos corações e garagens do Velho Continente e da Península.


A história da Hero MotoCorp é uma epopeia sobre velocidade, coragem e visão. Nasceu em 1984, algures numa velha e suja garagem no coração pulsante de Nova Deli. Sob o nome Hero Honda e fruto de uma aliança improvável, no entanto perfeita: o gigante indiano Hero Group e a lendária Honda japonesa uniram forças para transformar a mobilidade na Índia. Numa nação onde a estrada se confunde com o destino de milhões, a Hero Honda rapidamente se tornou sinónimo de fiabilidade, simplicidade e sonho acessível. A Splendor e o Passion deixaram de ser apenas motociclos para se tornarem símbolos de liberdade e rotina reinventada. 

O ano de 2010 marcou uma viragem decisiva. A parceria com a Honda chegou ao fim, e a Hero nunca perdeu o fôlego. Rebatizada como Hero MotoCorp, a marca assumiu a sua identidade própria e manteve-se no topo do mercado indiano, onde comanda cerca de 30% das vendas de duas rodas. Uma liderança construída sobre décadas de trabalho árduo, inovação e uma paixão quase obsessiva por cada detalhe mecânico e estético. 

À CONQUISTA DA ASIA 
Mas a Hero não se ficou pela Índia. Hoje, está presente em 49 países, espalhando o seu ADN de eficiência, resistência e espírito aventureiro desde o México até à Itália, passando por mercados em constante expansão como Sri Lanka e outros cantos da Ásia. 


Cada modelo é um manifesto: A Splendor Plus, icónica e imortal, é a prova de que fiabilidade também pode ser poesia sobre duas rodas; a Xtreme 125R mistura estilo e performance num equilíbrio perfeito; a XPulse 200, com o seu ADN aventureiro, desafia os terrenos mais difíceis e convida o motocislista a perder-se na estrada e a reencontrar-se na alma; o Karizma XMR 250 exala desportivismo e design; e a Hunk 440 anuncia que a Hero não teme disputar um espaço mais especial, com o olhar firme no futuro. 

DESAFIO DAKAR
E se a estrada é paixão, a competição é a adrenalina que corrói as veias. A Hero MotoCorp não se limita às ruas; ela tenta dominar os desertos e dunas do Rally Dakar através da Hero MotoSports Team Rally. Desde a estreia em 2017, a equipa tem deixado a sua marca nos terrenos mais brutais do planeta, provando que cada moto, cada piloto e cada peça de metal carrega consigo uma vontade de ferro. 


E entre estes heróis da velocidade, pulsa o sangue português. Paulo Gonçalves, lenda que nos deixou cedo demais, fez história na equipa Hero. Joaquim Rodrigues Júnior ama desafiar limites e Sebastián Böhler representa a mescla perfeita entre técnica e paixão, reforçando o elo da Hero com o nosso país. Cada piloto, cada curva, cada quilómetro percorrido conta uma história de coragem, resiliência e amor pelo motociclismo. A Hero MotoCorp não é apenas uma marca; é uma história viva, uma sinfonia mecânica que ecoa pelo mundo, desde os becos de Nova Deli às dunas do Dakar. 

A empresa terá produziu aproximadamente 6 milhões de unidades de motocicletas em 2024. Todavia há fontes que apontam para um número superior a sete milhões. É sem dúvida alguma um dos maiores fabricantes mundiais de motos em volume, se não mesmo o maior de todos. 

MILÃO 2024 
Faz agora um ano. O Salão EICMA de Milão, em 2024, pulsava com uma energia quase elétrica. Cada corredor parecia vibrar com o som de motores, o brilho metálico das carenagens e o murmúrio constante de jornalistas, agentes e curiosos que se cruzavam como enxames inquietos. No coração desse turbilhão, o stand da Hero impunha-se com uma presença quase silenciosa, mas impossível de ignorar. As motos alinhadas, robustas e fiéis à tradição indiana, brilhavam sob as luzes, mas o seu desenho suscitava olhares e comentários discretos: brutas, confiáveis, mas ainda longe daquilo que o europeu exige para chamar de “elegante sobre duas rodas”.


Entre os corredores, sussurros percorriam os espaços como correntes invisíveis. Alguns agentes europeus, habituados a negociar o gosto do continente, aproximavam-se, indagando discretamente os responsáveis da Hero: “Quando é que estas motos serão pensadas para o nosso dia-a-dia, para o commuting, sem perder fiabilidade?” A resposta nunca chegava, mas os olhares diziam tudo. O desejo do mercado era claro: motos de baixa e média cilindrada, com linhas limpas, detalhes técnicos refinados, suspensão ágil, qualidade que se sente ao toque, segurança que se respira. Tudo isto, porém, envolto numa condição quase sussurrada entre os corredores: que o preço permanecesse acessível, justo, capaz de atrair quem procura a perfeição sem rasgar a carteira. 

E foi então que os rumores começaram a ganhar corpo, entre cafés, aperto de mãos e flashes das máquinas fotográficas. Falava-se de protótipos escondidos, de modelos ainda por revelar, com cores pensadas para os olhos europeus e soluções técnicas afinadas ao gosto do continente. O murmúrio crescia, quase como o rugir de um motor prestes a libertar toda a sua força. Naquele stand, entre luzes e sombras, ficou no ar a sensação de que algo estava a mudar: a Hero podia, finalmente, estar a ouvir o diz-que-diz do mercado europeu, preparando-se para se aproximar de nós sem abdicar da sua identidade — e mantendo, como exigem os europeus, o preço tão baixo quanto possível. 

XPULSE 200 4V — A PEQUENA GRANDE AVENTUREIRA JÁ ESTÁ EM ITÁLIA 
Algumas motos medem-se em cavalos; outras, em vontade. A Xpulse 200 4V pertence a esta segunda categoria. Com o seu monocilíndrico de 199,6 cc, refrigeração a óleo e quatro válvulas, entrega uns modestos 19 cavalos — mas cada cavalo vibra com intensidade. O quadro é leve, as suspensões longas, as rodas de 21” à frente e 18” atrás denunciam a vocação trail, pronta para terra, areia, pó e curvas que desafiam a gravidade. 


O seu farol LED brilha como farol de esperança na neblina europeia. Painel digital, navegação integrada, ABS de dois canais — todos os detalhes essenciais, sem luxo supérfluo, sem engano. Lançada nos últimos dias em Itália, pela Pelpi International, a Xpulse 200 4V é um manifesto da simplicidade, da aventura pura, do prazer de colocar uma mão no guiador e sentir o mundo passar. Preço? Cerca de 3.000 euros — uma pechincha para a liberdade que oferece, metade do que pedem por rivais que se vestem de modernidade e esquecem a alma. 

No entanto o que realmente impressiona não é o preço, nem a tecnologia, nem a robustez: é a promessa de sentir a estrada com o coração, de voltar a sorrir quando o pó se cola à jaqueta e a poeira entra nos olhos. 

GRUPO ONEX — O BASTIDOR IBÉRICO DAS MARCAS QUE OUSAM ENTRAR 
Se a Hero é a fábrica, o Onex é o palco. Um grupo espanhol discreto, sediado em Valência, que se tornou porta de entrada para várias marcas asiáticas no mercado ibérico. Não é uma marca que brilhe nos depósitos das motos — é quem as põe lá. 

O Grupo Onex é uma entidade empresarial espanhola com sede em Albuixech, na província de Valência, dedicada à importação e distribuição de motocicletas na Península Ibérica. Fundado em 1982, o grupo possui uma vasta experiência no setor, tendo representado marcas de prestígio como Ducati, Harley-Davidson e Triumph em Espanha. Atualmente, é reconhecido como o importador exclusivo de várias marcas asiáticas e europeias

O Grupo Onex é uma constelação de empresas, entre elas a Onetrón Motos, especializadas em importação, distribuição, pós-venda e homologações. No seu portefólio estão nomes que, há uns anos, poucos levavam a sério — e que hoje vendem milhares de unidades: Voge, Zontes, Royal Enfield, Hanway, SWM, Super Soco, entre outras. A Onex construiu uma reputação de operador sólido e discreto, que sabe navegar as complexidades da União Europeia e as diferenças culturais do mercado ibérico. Sabe o que é transformar uma marca sem história numa rede de concessionários, com publicidade, peças, serviço e confiança. 

Em 12 de setembro de 2025, o Grupo Onex sofreu um grave incêndio nas suas instalações em Albuixech. O fogo afetou as áreas de escritório e parte do armazém de peças, mas não houve danos pessoais. A empresa assegurou que o centro logístico não foi danificado e que a distribuição de motocicletas continuaria sem interrupções.

Em Portugal, o Grupo Onex está presente através da importação e distribuição das marcas que representa, incluindo Royal Enfield e Voge. Estas marcas têm uma rede de concessionários e pontos de venda em várias regiões do país, oferecendo aos motociclistas portugueses acesso a modelos de diversas cilindradas e estilos. 

HERO MOTOCORP ANUNCIA ENTRADA EM ESPANHA 
Esta semana, a Hero MotoCorp, informou através de comunicado, datado do passado dia 15, que acaba de entrar no mercado espanhol. Esta expansão marca o 50.º país onde a marca está presente, reforçando a sua presença na Europa, depois de ter também chegado a Itália há poucos dias. A entrada em Espanha é feita em parceria com a Noria Motos, uma empresa do grupo ONEX. Juntas, vão lançar três modelos Euro 5+ adaptados ao mercado europeu: Xpulse 200 4V, Xpulse 200 4V Pro e Hunk 440. 


A Noria Motos vai abrir mais de 30 pontos de venda e assistência nas principais cidades espanholas, com planos de expandir para mais de 50 até 2026 e alcançar uma cobertura total até 2028. A Hero MotoCorp já serve mais de 125 milhões de clientes em todo o mundo. 

A DANÇA SILENCIOSA — HERO E ONEX, RUMO A PORTUGAL? 
Em Itália, a Hero escolheu Pelpi. Na Península Ibérica, o grupo Onex é o parceiro ideal. Tudo encaixa: a Hero precisa de estrutura, experiência e rede; o Onex precisa de marcas fortes e aspiracionais. Para a Hero, será a entrada por uma porta de prestígio; para o Onex, será o peso industrial de uma gigante; e para nós, motociclistas, a promessa de um novo capítulo de liberdade e aventura. 

Se a aliança acontecer, o mercado ibérico das duas rodas poderá tremer. Não pelos gigantes, mas pela alternativa honesta, pela simplicidade, pelo prazer de andar sem artifícios. A Hero democratiza a aventura. A Onex garante que ela chegue a nós. Juntas, podem escrever uma história em que a paixão supera a burocracia, em que o aço fala mais alto que o marketing, e em que cada estrada é uma promessa cumprida.

No fim, é disso que se trata: não apenas vender motos, mas fazer renascer a vontade de montar, sentir, viver.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Endless Summer e Motociclismo: O Verão Eterno da Estrada

Há dias em que o calendário mente. O outono está no calendário, mas o calor no asfalto insiste em prolongar a ilusão do verão. O céu é limpo, azul de postal, e a temperatura parece suspender-se, recusando o declínio da estação. Nessas jornadas, o motociclista compreende melhor do que ninguém o conceito de Endless Summer — esse verão eterno que não é apenas uma estação, e sim uma atitude, uma estética, um estado de espírito. 


O termo nasceu longe das estradas portuguesas. Foi forjado nas praias da Califórnia, nos anos sessenta, embalado pelas ondas do Pacífico e pelo imaginário juvenil que via na liberdade e no movimento o antídoto contra a rotina. Mas cedo deixou de pertencer apenas ao surf. Transformou-se em mito cultural global, espalhando-se pela música, pelo cinema e, inevitavelmente, pelo motociclismo. 

A RAIZ: SURF, CINEMA E CALIFÓRNIA
Em 1966, Bruce Brown lançou The Endless Summer, documentário que seguiu dois surfistas em busca da onda perfeita, viajando entre hemisférios para escapar ao inverno. O filme não era apenas sobre surf: era sobre juventude, liberdade, evasão, e a ideia de que a vida podia ser uma viagem infinita, desde que houvesse sol, mar e estrada para perseguir. 

A banda sonora deste imaginário estava a ser escrita em paralelo por um grupo de rapazes de camisas às riscas e vozes harmonizadas: The Beach Boys. A sua música destilava sol, gasolina e mar — canções que falavam de motores, pranchas e amores de verão. Era o som de uma América que queria viver sem fim, embalando a ilusão de uma juventude eterna. 


A Califórnia, com as suas estradas costeiras — a Highway 1 a serpentear entre falésias e praias — tornava-se palco e metáfora: a viagem era infinita, o horizonte nunca se fechava, e o verão era uma promessa que não conhecia calendário. 

O CONTÁGIO: MOTOCICLISMO E CULTURA DE ESTRADA
Seria impossível que o motociclismo ficasse imune a esta onda cultural. Afinal, a moto partilhava a mesma gramática do surf: velocidade, equilíbrio, risco, o corpo exposto aos elementos. Onde o surfista lia a onda, o motociclista lia o asfalto e o pó. Onde o surfista atravessava mares, o motociclista atravessava fronteiras. 

No final dos anos sessenta, o cinema selou esta ponte com Easy Rider (1969). Duas Harley-Davidson a cortar a América profunda, com sol no horizonte e estrada sem fim, condensaram no ecrã o mito do verão eterno aplicado ao motociclismo. A viagem não era apenas deslocação: era manifesto, libertação, experiência total. 


A estética do Endless Summer infiltrou-se nas publicidades de motos japonesas que, nos anos setenta, prometiam liberdade acessível a todos. Revistas exibiam jovens de t-shirt e óculos escuros a rolar por estradas costeiras, como se cada curva fosse uma extensão de Malibu. A Honda, a Yamaha, a Kawasaki, todas beberam desta linguagem: o verão era a estação natural da moto. 

O ECO EUROPEU 
A Europa, sempre fascinada pelo mito americano, reinterpretou-o à sua maneira. Em Itália, a Vespa e a Lambretta, símbolos da dolce vita, tornaram-se veículos de juventude solar, de praias em Rimini e noites em Roma. Em França, a Nouvelle Vague filmou estradas de verão e rapazes de cabelo ao vento. Em Espanha e Portugal, ainda a sair de ditaduras, a ideia de liberdade associada à estrada soava quase subversiva. 

As estradas europeias, menos retas que as americanas, mais antigas e sinuosas, acrescentaram outra dimensão ao mito: a de que o verão eterno podia ser vivido não só em grandes highways, mas em Nacionais com cheiro a pinhal, ladeadas de aldeias e igrejas brancas. A viagem tornava-se também encontro com a memória, com a história, com a paisagem ancestral. 

POÉTICA DO VERÃO ETERNO
Rolar de moto num dia de outubro, com 28 graus, céu limpo e vento morno, é viver o paradoxo de um verão fora de estação. O som do motor converte-se em banda sonora, tão evocativa quanto os Beach Boys ou Jimi Hendrix. O asfalto aquece como se fosse areia. O vento no capacete é sal do mar. 


A moto é uma prancha mecânica. Surfa-se a onda do tempo, prolonga-se o instante, recusa-se o declínio do sol. Cada curva é espuma, cada reta é horizonte. O motociclista é um surfista da estrada, e o seu verão eterno é feito de quilómetros em busca de algo que nunca se alcança, mas que, no fundo, não precisa de ser alcançado. 

O PRESENTE: UM OUTONO AZUL
Portugal, neste início de outono, oferece dias que parecem contradição: calendário diz outono, mas a pele sente verão. É aqui que o mito renasce, atualizado. O motociclista veste o casaco leve, liga a máquina, e o escape rouco anuncia: o verão ainda não acabou. Talvez nunca acabe. 

As redes sociais estão cheias de imagens de estradas douradas pelo sol de outubro, de viagens improvisadas que parecem férias. O espírito do Endless Summer continua vivo, mesmo que já não seja falado em voz alta. É ele que empurra o motociclista para a estrada, que o convence de que cada curva pode ser infinita, cada viagem pode durar para sempre. 

O LEGADO
O Endless Summer deixou de ser apenas um filme, uma música ou uma moda. Tornou-se arquétipo cultural, ideia persistente que atravessa gerações. Para o surfista, para o motociclista, para qualquer viajante: o verão eterno é o símbolo de uma juventude que não envelhece, de uma liberdade que não se prende ao calendário. E enquanto houver motores a rugir sob céus azuis, enquanto houver quem queira fugir pela estrada em busca de um horizonte, o mito continuará vivo. 


O motociclista português que hoje rola pela Serra de Montejunto ou pela Nacional 2 participa na mesma epopeia cultural que começou nas praias californianas há seis décadas. O seu verão não acaba. O asfalto, quente e vibrante, é a prova. O verão eterno não está no calendário. Está no motor que se acende, no horizonte que nunca se alcança, na estrada que insiste em não terminar.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

BENDA: uma nova marca e uma ambição à escala global

Na passada semana, na apresentação nacional promovida pela Multimoto, ficámos a conhecer de perto a BENDA Motors — uma marca chinesa que chega a Portugal com a ambição de se afirmar num mercado cada vez mais exigente e sofisticado. É um nome novo por cá, mas vem carregado de estrutura: por trás está a Hangzhou Saturn Power Technology Co., Ltd., fundada em 2016 e detentora de duas fábricas, no norte e no sul da China. 


O grupo nasceu com uma missão clara — desenvolver tecnologia própria, construir motores internamente e desenhar motos que se distingam não só pela performance, mas também pela forma. E é precisamente aí que a BENDA quer marcar terreno: na estética e na engenharia. 


Desde 2017 que a marca tem vindo a montar um ecossistema industrial robusto. Criou a sua Divisão de Motores, abriu escritórios de design e engenharia na China e na Áustria, e começou a desenhar motores prontos para produção em massa. Em 2020, a Chinchilla 300 foi o primeiro sucesso comercial; em 2021, com a LFC 700 e a Rock 300, o nome BENDA começou a ser ouvido fora do mercado asiático. No ano seguinte, a empresa expandiu-se para o universo dos veículos de quatro rodas, investindo 700 milhões de RMB (cerca de 85 milhões de euros) numa nova fábrica em Hangzhou — um sinal claro de fôlego industrial. 


Em 2023, a Darkflag 500, a primeira cruiser V4 fabricada na China, mostrou que a marca não tem medo de arriscar onde até agora só os gigantes jogavam. Ao lado dela, a Chinchilla 500 e a Napoleonbob 500 consolidaram o posicionamento da BENDA nos segmentos cruiser e bobber. Em 2025, a gama já se estende das 250 cc às 1000 cc e mais, cobrindo desde os condutores iniciantes até aos mais experientes. 

DESENHO E TECNOLOGIA 
Mas o que realmente distingue a BENDA — e o que ficou evidente na apresentação onde o ESCAPE esteve presente — é a obsessão pelo design industrial. O desenho é tratado como uma linguagem emocional e técnica ao mesmo tempo. As linhas, as proporções e o acabamento não são apenas estética: são o reflexo de uma filosofia que quer fazer da moto uma extensão da personalidade de quem a conduz. A marca trabalha com equipas de design na Áustria e na China, numa parceria que procura captar o melhor dos dois mundos — o arrojo oriental e o rigor europeu.


Outro pilar essencial é o desenvolvimento independente de motores. A BENDA produz internamente desde bicilíndricos em linha (de 125 cc a 2000 cc) a V-Twins e V4, e até seis cilindros em linha, o que mostra uma autonomia técnica rara neste segmento. A marca não depende de plataformas partilhadas — e isso, para quem conhece a indústria, é uma diferença significativa. 


No campo tecnológico, a BENDA procura levar soluções de ponta a um público mais vasto. Falou-se hoje em sistemas como o cruise control, o acelerador eletrónico, a suspensão adaptativa eletrónica automática e o ram-air frontal otimizado — exemplos de como a engenharia está a ser aplicada com inteligência e não apenas como adorno. Há ainda planos de integração de inteligência artificial e até holografia em futuros modelos. Pode soar futurista, mas é um sinal claro da direção em que a marca quer ir: motos que comunicam, que aprendem, que reagem.


Tudo isto acontece num contexto em que a forma como se vive o motociclismo está a mudar. As motos já não são apenas máquinas de transporte — são símbolos de identidade, liberdade e sociabilidade. A BENDA parece compreender isso, e posiciona-se como uma marca que quer dialogar com uma nova geração de condutores, sem ignorar os que ainda preferem o som metálico e o cheiro da gasolina. 

PERSPETIVA PARA PORTUGAL
A entrada da BENDA no mercado português, pelas mãos da Multimoto, é mais do que simbólica — é estratégica. Portugal é um terreno fértil para novas propostas que tragam design forte, motores credíveis e preços equilibrados. E é precisamente aí que a BENDA pode encontrar espaço para crescer. 


O mercado das cruisers está a despertar. Cada vez mais motociclistas procuram estilo, presença e identidade, não apenas utilidade. A BENDA tem aqui uma oportunidade clara: captar quem quer algo diferente das marcas tradicionais, como Harley-Davidson ou Indian, mas sem pagar o preço da exclusividade americana. Se conseguir manter uma boa relação qualidade/preço, pode tornar-se uma alternativa real. 


Há também o potencial de atrair quem valoriza componentes modernos, design arrojado e um “look de topo”, mesmo que o preço final não seja o mais baixo. O que conta é o valor percebido — e, nesse campo, a BENDA joga com trunfos visuais fortes


Nos modelos de baixa e média cilindrada (250-500 cc), o apelo é outro, mas não menor: são motos ideais para quem quer entrar no mundo das cruisers, fazer passeios de fim de semana ou simplesmente ter uma moto com carácter, sem custos proibitivos de manutenção. Se a rede pós-venda da Multimoto conseguir garantir confiança e apoio, o terreno está preparado

AS TRÊS PROTAGONISTAS DO DIA 
Portugal tem dimensão modesta, mas paixão imensa por motos. E a BENDA chega no momento certo, quando o público está aberto a experimentar o novo, desde que o novo seja bom. A BENDA quer “unleash the ride” — libertar a condução. Nós, no Escape Mais Rouco, queremos apenas confirmar se essa liberdade é mesmo tão entusiasmante quanto soa. 


Três motos, três linguagens, três formas de interpretar o prazer de conduzir. A Benda apresentou-se em Portugal com um trio que resume bem a sua filosofia: design ousado, motorização moderna e uma vontade clara de ocupar espaço no imaginário dos motociclistas. A Napoleonbob 500, a Chinchilla 500 e a LFC 700 não são apenas produtos — são declarações de intenções. Tivemos um breve contacto com elas nos arredores de Lisboa e nas sempre entusiasmantes estradas da Serra de Sintra. 

NAPOLEON BOB 500 – O REGRESSO DO ESPÍRITO BOBBER 
A Napoleon Bob 500 é uma Bobber de corpo inteiro, inspirada nas linhas clássicas americanas dos anos 50, mas reinterpretada com irreverência e tecnologia atual. Por baixo da estética musculada e do assento baixo, quase rente ao chão, pulsa um motor V-Twin de 475,6 cc, com oito válvulas, refrigeração líquida e uma taxa de compressão de 11,5:1. A potência ronda os 47 cavalos às 8 800 rotações por minuto, com um binário máximo próximo dos 42 Nm às 6 700 rpm — números que, na prática, se traduzem num comportamento vivo, elástico e surpreendentemente vigoroso. 


A transmissão faz-se através de uma caixa de seis velocidades, assistida por embraiagem deslizante, e uma transmissão final por correia dentada, algo que reforça o apelo cruiser e o conforto de rolamento. Com cerca de 215 quilos em ordem de marcha, pneus largos (150/80-16 à frente e 180/65-16 atrás) e ABS de dois canais, a Bob revela uma presença firme na estrada. O assento, a 695 mm do solo, obriga a uma posição de condução baixa e dominante, com o guiador “Flying Wing” a abrir o peito e os pés avançados. 


Na estrada, o conjunto surpreende de forma visceral. O motor sobe de rotação com leveza, o som é muito encorpado, e a resposta ao acelerador entusiasta. O comportamento é estável, embora os pneus de origem peçam algo mais nobre, e a travagem, ainda que suficiente, não tem a precisão que o conjunto merecia. Mas o carácter está lá — a Napoleonbob é um tributo moderno ao espírito Bobber: estilosa, desafiante e cheia de alma. 

CHINCHILLA 500 – A ALMA URBANA E ELEGANTE 
Com a Chinchilla 500, a Benda suaviza o tom e mostra o outro lado da moeda. Partilha com a Napoleon o mesmo motor V-Twin de 475,6 cc, refrigerado a líquido e com distribuição por duplo comando e oito válvulas, debitando cerca de 47 cavalos de potência máxima e 42 Nm de binário. Mas aqui o enquadramento é diferente: a Chinchilla veste-se de cidade e de estrada secundária, de serenidade e de elegância


A caixa de seis velocidades, a transmissão final por correia, o ABS de dois canais e o peso na casa dos 215 quilos, combinam-se com uma altura de assento de 705 mm para oferecer uma moto acessível, confortável e intuitiva. As suspensões dianteiras invertidas e o amortecedor traseiro hidráulico dão-lhe uma leitura suave do piso, e o conjunto mostra-se mais equilibrado, mais dócil e menos provocador do que a sua irmã Bobber. 


Na condução, é notório o carácter mais amistoso do chassis e a posição de condução menos exigente. O motor continua a responder com vigor, mas sem a tensão da Napoleon, o que faz da Chinchilla uma moto ideal para quem procura prazer estético e praticidade em doses equivalentes. Mantém, todavia, as mesmas margens de melhoria: pneus que mereciam ser de gama superior e uma travagem que, sendo competente, poderia beneficiar de maior mordida inicial. A Chinchilla é, por assim dizer, a cruiser do dia-a-dia — a que nos faz querer sair de casa sem destino, apenas para sentir o vento. 

LFC 700 – A PROVOCAÇÃO EM ESTADO SÓLIDO 
E depois há a LFC 700, a moto que parece saída de um estúdio de ficção científica e não de uma linha de montagem. Tudo nela é excesso, mas de um excesso pensado. O motor é um quatro cilindros em linha de 677 cc, 16 válvulas, refrigeração líquida, capaz de debitar cerca de 84 cv às 11 000 rpm, e um binário próximo dos 61 Nm às 8 600 rpm. A caixa é de seis velocidades, com embraiagem assistida e deslizante, e a transmissão final é feita por corrente. 


Com quase 290 quilos em ordem de marcha, a LFC 700 impõe respeito. O pneu traseiro de 310 mm — sim, 310 — é uma das suas marcas registadas, conferindo-lhe uma estética única e uma pegada imensa, digna de uma dragster. À frente, uma forquilha KYB invertida ajustável, atrás um amortecedor KYB ajustável, ambos de bom nível e com afinação firme, contribuem para uma estabilidade irrepreensível em reta e um comportamento previsível em curva. 


A posição de condução é baixa, mas menos radical do que se poderia imaginar; o banco situa-se a cerca de 700 mm do solo, o que ajuda à manobrabilidade a baixa velocidade. E, quando o motor desperta, o som metálico dos quatro cilindros em linha anuncia outra dimensão de prazer. A LFC 700 não é uma cruiser tradicional — é uma afirmação estética e técnica. Desafia convenções, exige respeito e recompensa com uma experiência sensorial rara. É exótica, provocadora e, talvez, destinada a tornar-se peça de coleção. 

TRÊS MOTOS, UMA NOVA VOZ NA ESTRADA
Três motos, três linguagens e uma só mensagem: a Benda veio para ser levada a sério. A Napoleonbob 500 encarna o lado visceral e estético do motociclismo; a Chinchilla 500 oferece uma interpretação mais civilizada e elegante; e a LFC 700 é a prova viva de que a audácia ainda tem lugar no design contemporâneo. 


O grupo Multimoto merece um aplauso pela coragem de trazer esta marca para Portugal — por acreditar que o mercado nacional tem espaço para propostas diferentes, arrojadas e emocionalmente intensas. A Benda chega com estilo, com músculo e com alma. Que estas três máquinas encontrem estrada, quilómetros e histórias. E que marquem o início de um capítulo novo e entusiasmante na cultura motociclística portuguesa. Bem-vinda, Benda. Que o futuro soe rouco — como gostamos.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Três dias de luz, estrada e mar com a Moto Morini X-Cape 700

Há viagens que parecem condensar uma vida inteira em apenas alguns dias. Esta foi uma delas. Como é que se explica a sensação de levitar sobre arribas no Alentejo, com a estrada a fingir que caminha sobre as águas? Ou de reencontrar velhos amigos para partilhar quilómetros e histórias com a cumplicidade de uma máquina? Como se traduz em palavras a luz do Mira a beijar o Atlântico, ou o silêncio de um sobreiro com quase trezentos anos que viu passar impérios, revoluções e gerações inteiras de homens? Como se explica as estradas nacionais que têm uma voz própria? Que nos falam ao ouvido com sotaque antigo e lembram-nos o tempo em que viajar não era pressa, e sim descoberta. 

Foto: Rad Raven

Saímos de Lisboa a bordo da Moto Morini X-Cape 700, uma companheira de viagem que, desde cedo, mostrou estar à altura do desafio: leve no guiador, segura na ciclística e confortável mesmo com dois corpos a partilhar o banco e a mochila às costas da Miss Yoshimura. À antiga! 

DESTINO SUDOESTE ALENTEJANO 
O Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina, criado em 1988, estende-se por mais de 100 quilómetros de litoral, entre a planura dourada do Alentejo e o recorte dramático do Algarve. É uma das últimas grandes áreas costeiras selvagens da Europa, onde o Atlântico chega inteiro, sem filtros, e onde o diálogo entre o mar e a terra se faz em ondas, arribas, dunas e campos de cultivo que parecem estender-se até perder de vista. Mas convém dizer desde já: dentro deste parque há dois territórios com alma própria, irmãos sim, mas distintos na voz e na paisagem — o Sudoeste Alentejano e a Costa Vicentina. 

Foto: Rad Raven

O Sudoeste Alentejano é o Alentejo à beira-mar. Entre Sines e Odeceixe, encontramos um território onde a luz manda em tudo: nos arrozais de Alcácer do Sal, no casario branco de Vila Nova de Milfontes, nas falésias que descem abruptas ao mar em Malhão ou Almograve. O montado de sobro acompanha a viagem até quase beijar o Atlântico, lembrando que este é um Alentejo de transição, agrícola e marítimo ao mesmo tempo. 


Aqui, a vida tem outro compasso: vilas pequenas, pescadores que ainda trabalham com artes antigas, campos de tomate e batata que convivem com aves migratórias que encontram no estuário do Mira e nas arribas o seu refúgio. É uma costa mais serena, mais luminosa, mais ampla, com a planície alentejana sempre à espreita por trás das dunas. É aqui que se sente que o mar e a terra são cúmplices, não rivais. 


Mais a sul, a história muda de tom. A Costa Vicentina, já no Algarve, é a versão agreste, indomável e dramática do mesmo parque. Entre Odeceixe e Burgau, as arribas erguem-se como muralhas contra o Atlântico, o relevo é mais acidentado, a vegetação mais resistente ao vento e ao sal, e as praias surgem em reentrâncias escondidas, como segredos guardados a sete chaves. É uma costa de pescadores de percebes que desafiam o mar, de trilhos vertiginosos, de um mar mais bravo e de um horizonte mais agreste. 


Aqui o sol já não ilumina em dourado: corta em contrastes fortes, negros e verdes contra o azul profundo do oceano. É a costa dos surfistas, dos caminhantes do trilho dos pescadores, de quem procura ainda mais isolamento e um contacto cru com a natureza. 

Foto: Rad Raven

O Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina é uma só unidade administrativa, mas na verdade é feito de dois mundos complementares. O Sudoeste Alentejano oferece o equilíbrio entre a planície e o mar, uma costa larga, iluminada e aberta, onde ainda se sente a cadência tranquila do Alentejo. A Costa Vicentina, pelo contrário, é a face agreste e indomável do litoral português, onde o Atlântico mostra a sua força sem concessões. Desta vez escolhemos o equilíbrio e deixamos a indomável Costa Vicentina para outra viagem.

DIA 1 – LIBERTAR-SE DA SELVA, LUZ SOBRE O SADO E CHEGADA AO MAR 
Saímos de Alfragide cedo, do betão e da rotina. E logo que cruzámos a Ponte Vasco da Gama sentimos o estuário do Tejo a exalar promessa. O céu era azul de rompante, o sol dourado da manhã mergulhava nas águas, e o estuário parecia um espelho partido de luz. Depois, as salinas do Samouco, aves a riscar o ar, o cheiro de água salgada misturado com a terra húmida – cada quilómetro um reinício.


A Estrada Nacional 5 apareceu como velha amiga, com rugas, curvas e segredos. “Road to Nowhere” gosto de lhe chamar – mas ela sabe levar-nos a todo o lado. Cruzámos montado, sobreiros e azinheiras que guardam o passado, a memória da cortiça, do silêncio e do vento. 

A primeira e obrigatória paragem foi no Sobreiro Assobiador, em Águas de Moura, algo que não é só árvore, mas símbolo. Plantado por volta de 1783 (há cerca de 234-235 anos), classificado como Árvore de Interesse Público desde 1988, eleito “Árvore Europeia do Ano” em 2018 com mais de 26.600 votos. 


Este sobreiro, com mais de 20 extrações de cortiça desde 1820, produziu em 1991 cerca de 1.200 kg de cortiça, volume suficiente para fazer mais de cem mil rolhas. O seu tronco tem perímetro de ~4,15 m, altura de ~16 metros e copa de quase 30 metros — ramos que quase tocam no chão, abrigo de pássaros, guarida de histórias. 


Seguimos depois para Alcácer do Sal, com o Sado a espelhar brilhos e a luz a dançar no casario branco, lembrando-nos das raízes muçulmanas que moldaram este sul. A estrada oscila entre encanto e monotonia; chegada a Sines, zona industrial que pouco acalma a alma, mas que prepara o cenário para São Torpes, onde o mar reaparece, o ar suaviza, e Porto Covo surge como miragem de serenidade. O jantar farto foi no Pátio Alentejano, já em Vila Nova de Milfontes. Terra, mar, azeite e conversa farta.

DIA 2 – ESTRADA COMO ALMA, AMIGOS E O ABRAÇO DO ATLÂNTICO
Despertámos mais tarde, o corpo ainda a digerir as emoções do dia anterior. Pequeno-almoço lento, cheio de café, pão quente e expectativa. A estrada de terra em Almograve foi um épico à parte: sobe, desce, bordas de arribas, o vento a sacudir barreiras invisíveis, sensação de que a estrada nos sustentava sob rodas, como se andássemos suspensos entre terra e abismo. Aqui, estrada é personagem curvada, forte, generosa. 


Montado, de novo, mas mais íntimo: silêncios, cheiro a cortiça, folhas secas sob a moto. Depois Cabo Sardão, Praia das Furnas, Porto das Barcas — cada pedaço de costa com identidade, cada curva com promessa de vista, cada miradouro com sal. Zambujeira do Mar como eterna, imaculada, onde o Oceano não disfarça poder, onde foto alguma lhe faz justiça. 

Foto: Rad Raven

Encontro com Rad Raven e Lady Raven, amigos de estrada e com corações que sabem de viagens. Histórias sob o capacete, risos no depósito, imagens desenhadas pelo escape da moto. E a Moto Marini X-Cape 700, que não era só máquina — era o corpo que sentia os solos, que vibrava nas lombas, que se esticava no asfalto aceso de luz. 

Foto: Rad Raven

O percurso até Odeceixe trouxe-nos o encontro com o Atlântico no seu estado mais cru. Mimada que foi esta Moto Marini X-Cape 700 pela lente do Rad Raven, o regresso deu-se pela Estrada Nacional 120 e pelas curvas da Serra do Cercal. A Nacional 390 também apareceu no mapa, curta mas intensa, como um verso bem talhado, quase poema rodado. Milfontes de novo, mar no horizonte, jantar simpático no Manjedoura com vinho bom e conversa solta. 

DIA 3 – A DESPEDIDA CALMANTE, O MALHÃO E O SOL A PÔR-SE NO ATLÂNTICO 
O dia amanheceu suave. Despedida em Vila Nova de Milfontes depois de novo pequeno-almoço forte, com sol a prometer. A marginal, a foz do Rio Mira: água doce encontra água salgada, borbulhas no estuário, reflexos, calor da manhã, luas líquidas. Explosão de luz sobre o Mira. 

Foto: Rad Raven

Nisto surge o Malhão como porto seguro para o corpo exausto: praia selvagem, areia consciente, ondas que não exigem mais do que entrega. Banho de iodo, de sal, deixar o tempo cair sem pressa. A moto estacionada à sombra, o vento a brincar com as roupas, o silêncio do Atlântico lembrando segredos de surfistas e antigos visitantes que somente ali ousavam ficar. 


E, no regresso, a estrada costeira até São Torpes, com a Golden Hour incandescente manchando o mar, o sol a entornar-se no horizonte. As últimas cores do dia, últimas curvas da costa. O regresso de novo por estradas nacionais foi feito já de noite. E com a Ponte Vasco da Gama, diferente da manhã luminosa. Mais suave, mais plena. 

UMA COMPANHEIRA SURPREENDENTE 
Se a Costa Alentejana foi o cenário, a Moto Morini X-Cape 700 foi a verdadeira parceira de viagem. Viajámos a dois, com mochila às costas, percorremos centenas de quilómetros de asfalto e de terra, enfrentámos vento, curvas e rectas intermináveis — e a moto nunca se queixou. Pelo contrário: mostrou conforto inesperado, uma proteção aerodinâmica que fez diferença, uma ciclística equilibrada que transmitiu confiança, e um motor sempre disponível, pronto a responder. 

Foto: Rad Raven

Acima de tudo, foi o ecletismo que nos conquistou: uma moto que se adapta, que aceita estrada e fora de estrada, que transporta bagagem e cumplicidade sem perder a leveza de espírito. Uma moto que não nos deixou ficar mal — pelo contrário, surpreendeu-nos em cada quilómetro. E é por isso que esta viagem não se conta apenas como uma travessia da Costa Alentejana, mas como uma descoberta: a de que a X-Cape 700 é muito mais do que esperávamos.
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