segunda-feira, 21 de junho de 2021

Um dia épico pelas estradas do Alto Douro Vinhateiro

"O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta". 

Este é Miguel Torga, que aprendemos a ler e respeitar no nosso chamado ensino secundário. Miguel Torga no seu "Diário XII". O Douro, essa paixão inspiradora. Solo sagrado. Estradas de sonho. Dias épicos! Não consta que Miguel Torga tenha sido motociclista. Se Miguel Torga vivesse hoje ficaria espantado com a quantidade de vinha por este país trabalhada. Mas o Douro…, oh senhores, o Douro: sem margem de dúvida a maior obra portuguesa de todos os tempos! 

Na mais recente viagem realizada por este ESCAPE por este Portugal fora, contámos com a soberba Kawasaki Versys 1000 Special Edition, velha conhecida do blogue (link) e agora em versão Grande Turismo, ou seja, cheiinha de espaço para tralhas e bagagem, equipada com faróis auxiliares e protecções de motor para o caso daquelas sempre aborrecidas quedas para o lado com a moto em modo viagem. Acontece a todos… 

Todavia, em bom rigor, o que tenho para vos oferecer hoje é um texto diferente, género de prosa que muito gosto de fazer e pouca oportunidade existe para escrever. Um texto sobre um dia épico pelas estradas do Alto Douro Vinhateiro, nascido no seio de uma viagem por Portugal – mais uma – e que quase se tornou, por força da geografia e das estradas, numa das melhores jornadas de motociclismo de todo o sempre. Devo partilhar. Venham comigo… 

Provesende é uma antiga freguesia portuguesa do concelho de Sabrosa. Foi vila e sede de concelho. Situada na região do Alto Douro Vinhateiro, na margem norte do rio, entre as vinhas, os solares e as casas em pedra, Provesende oferece hoje uma absoluta viagem no tempo e a comunhão entre o passado e o presente. 

Gosto tanto de Provesende que nas últimas três viagens por este nosso Portugal por lá passei sempre. E é de Provesende que parte este pequeno roteiro mágico. Daqui é descer ao Pinhão pela Estrada Nacional (N) 323 e tomar um belo pequeno-almoço na Princesa do Douro, bom café e gente simpática. 

Atravessada a velha ponte, rapidamente abandonamos a N323 para subir até ao seu ponto final a (agora) mundialmente reconhecida N222. No inicio da subida acompanhamos o Rio Torto e, quando deixamos de ver este é tempo para uma primeira paragem na arrebatadora Quinta do Ventozelo

Situada na margem esquerda do Douro, ao chegar a Ervedosa, a Quinta de Ventozelo é das mais bonitas e apaixonantes da região. Num vasto anfiteatro sobre o rio encontramos aquilo que alguns chamam de “portas do silêncio do Douro”, onde o tempo parece correr mais devagar. A tranquilidade e a ligação plena à Natureza são o valor intangível principal desta Quinta. Imperdível! 

A viagem segue então, finalmente, desfrutando das deliciosas curvas da N222 que acompanha, como muitas das estradas nacionais, o relevo do terreno. Já depois de atravessado o Rio Coa, chegados a Almendra há que fazer opções. E a minha foi pela da aventura. Descer a velha Nacional (N332) rumo à estação e três quilómetros antes desta – a estrada apesar de velha está bem marcada – cortar à direita para um fora de estrada fácil e ainda assim desafiante que nos leva ao encontro da N221 e do Alto da Sapinha. Este fora de estrada foi realizado com sucesso, em modo viagem, por uma Kawasaki Versys 1000 que apesar da sua jante 17 e pneus de turismo abriu o xisto rumo ao asfalto. Magnifico! 

Já em terrenos de Parque Natural do Douro Internacional, o Alto da Sapinha domina a paisagem em direção a Barca de Alva onde o ESCAPE recomenda uma refeição rápida e ligeira junto ao Douro, com vista para o Reino de Espanha. Em Barca de Alva encontramos um dos mais esquecidos e ao mesmo tempo mais colossais troços de Estrada Nacional em Portugal. Dali a N221 ruma a norte junto ao Douro e a Kawa faiscou a cada curva negociada. Desta vez esqueci a vista apaixonante do Penedo Durão ou a frescura eterna da aldeia de Mazouco e foi sempre a queimar Mitas Touring Force até ao cruzamento com a N220 e respectiva descida para Torre de Moncorvo com paragem na famosa Taberna do Carró e compra de um dos seus licores caseiros que já em casa faz prolongar esta viagem pela eternidade (da dimensão da garrafa). 

Estando em Moncorvo não é possível deixar de rumar a Norte e vislumbrar lá do alto do miradouro de São Gregório a foz do deslumbrante Rio Sabor. Dali é tempo de pensar no regresso e no fim da aventura do dia. Ainda há mais faíscas para espalhar no asfalto da N215 já rumo ao oeste, e após um pouco de IC5 descer à foz do rio Tua pela não menos apaixonante N214. 

O dia estava de facto a ser épico. E assim continuará até fim nestes cerca de trezentos quilómetros que se arriscam a concorrer ao prémio “os melhores trezentos quilómetros de Portugal”.

Da foz do Tua é então necessário subir a impecavelmente bem asfaltada N212 até Alijo, dali rumar à perigosa mas deslumbrante descida do Vale de Mendiz pela N323-3 e enfim, regressar ao Pinhão terminando o dia de volta à casa de partida em Provesende. 

Tomar um banho e rumar à casa da Dona Graça que nos espera com a sua receita de Pernil em Vinho do Porto com vista para o pelourinho histórico de Provesende. Não sei. Não sei se este terá sido o meu melhor dia de motociclismo por este nosso Portugal. Mas durante a viagem senti o chamamento de o cristalizar, aqui, no ESCAPE. Na esperança que se eternize e inspire outros motociclistas como eu. Como tu. 

De facto, o Alto Douro Vinhateiro é uma zona particularmente representativa da paisagem que caracteriza a vasta Região Demarcada do Douro, a mais antiga região vitícola regulamentada do mundo. Marcado por estradas sumptuosas, a paisagem cultural do Alto Douro combina a natureza monumental do vale do rio Douro, feito de encostas íngremes e solos pobres e acidentados, com a acção ancestral e contínua do Homem, adaptando o espaço às necessidades agrícolas de tipo mediterrâneo que a região suporta. 

Esta relação íntima entre a actividade humana e a natureza permitiu criar um ecossistema de riqueza única, onde as características do terreno são aproveitadas de forma exemplar, com a modelação da paisagem em socalcos, preservando-a da erosão e permitindo o cultivo da vinha. A região produz, entre outros, o famoso vinho do Porto, representando o principal vector de dinamização da tecnologia, da cultura, das tradições e da economia locais. O grande investimento humano - onde incluímos as Estradas Nacionais - nesta paisagem de singular beleza tornou possível a fixação das populações desde a longínqua ocupação romana, e dele resultou uma realidade viva e em evolução, ao mesmo tempo testemunho do passado e motor do futuro. 

Mapa do tesouro...

Numa palavra, um poema geológico, beleza absoluta. Foi assim um dia épico pelas estradas do Alto Douro Vinhateiro. Obrigado Miguel Torga. Obrigado Portugal.

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