terça-feira, 6 de abril de 2021

A estrada, a moto e o telefone esperto – Estrada Nacional 116

Mafra, manhã do dia 5 de Outubro do ano de 1910. Uma revolução organizada pelo Partido Republicano Português, iniciada no dia 2 de Outubro e vitoriosa na madrugada desse mesmo dia 5, destituía a monarquia constitucional, implantando o regime republicano que hoje vigora em Portugal. 

Naquela manhã cinzenta, o Rei decaído procurava um modo de chegar ao Porto, acção complexa de levar a cabo por terra devido à paupérrima, mas ainda assim eficaz acção dos revolucionários. A solução aparece quando chega a notícia de que o iate real "Amélia" fundeara ali perto, na Ericeira. Tendo a confirmação da proclamação da República e o perigo próximo da sua prisão, D. Manuel II decide embarcar com o objectivo de se dirigir ao norte de Portugal. 

Foto: Gonçalo Fabião

A família real dirigiu-se então à Ericeira de onde, com recurso a dois barcos de pesca e perante os olhares de numerosos curiosos populares – como mostram as imagens da época -, embarcaram no iate real. Aí, D. Manuel II, terá sabido que também o Porto tinha aderido à causa republicana. O local de destino escolhido para esta atabalhoada missão de fuga acaba por ser Gibraltar. Nobre, D. Manuel ordenou que o navio, por ser propriedade do Estado português, voltasse a Lisboa. O Rei deposto, no entanto, viveria o resto dos seus dias no exílio. 

Foi assim, por aqueles caminhos, de Mafra à Ericeira, trajecto hoje parte integrante da Estrada Nacional 116 (N116), que desta maneira tremenda, quase trágica, terminaram setecentos e sessenta e sete (767) anos de Gloriosa História de Portugal. Parece impossível? Mas esta é uma página da História de Portugal. E quantas estradas assim encontramos na nossa vida? Pequenas, escondidas, empobrecidas e até abandonadas. Todavia inesquecíveis. 

NEBLINAS MATINAIS 
A Estrada Nacional 116 nasce pois na Ericeira. Naquela que é, provavelmente, a rotunda mais bonita de Portugal (se é que tal coisa pode existir), rotunda essa que mergulha cabeça tronco e membros na frescura do atlântico e intercepta a Nacional 247, uma das mais belas estradas costeiras aqui do rectângulo. Será caso para dizer que até para ser estrada há que ter sorte ao nascer?

Foto: Gonçalo Fabião

Dali, a N116 parte para o interior e logo atravessa a localidade do Sobreiro, muito popular entre os alfacinhas pela sua Aldeia Típica José Franco. Construída pelo oleiro com o mesmo nome, ali encontramos algumas construções que visam representar as ocupações típicas do Portugal de antanho em cenários de miniatura, com os respectivos instrumentos de trabalho. É um verdadeiro museu etnográfico e popular que vale a paragem e a visita para quem aprecia tais manifestações culturais. 

Até Mafra e ao cruzamento com a Estrada Nacional 9 (link) é um instante. A Vila e o seu monumental Palácio Nacional são conhecidos por todos e desta vez paramos só para a foto fácil. Abandonada Mafra a estrada mantém o seu perfil descaracterizado. Só um par de quilómetros mais adiante, já no troço que nos conduz à Malveira e ao encontro com a Estrada Nacional 8 (link), com a qual partilha algumas centenas de metros, recupera a alma de velha Estrada Nacional que suavemente acompanha o relevo do terreno. 

Foto: Gonçalo Fabião

QUANDO A ESTRADA ENSINA 
Chega enfim o melhor do que esta curta estrada tem para nos oferecer. Ultrapassada a disforme localidade de Venda do Pinheiro, entre Vale de São Gião e Bucelas, vamos encontrar cerca de uma dezena de quilómetros de asfalto de qualidade, pouco tráfego e sobretudo curvilíneas formas desenhadas no traçado que nos vão fazer sorrir e respirar fundo de prazer quando chegamos à auto-proclamada Capital do Arinto. 

Gostam de vinho? Este ESCAPE adora. Com moderação. Mas confessa que até este momento desconhecia que o Arinto é mesmo uma casta originária daqui, deste ponto da estrada onde estamos, Bucelas, concelho de Loures, distrito de Lisboa. 

Foto: Gonçalo Fabião

Também designada por Pedernã na região norte de Portugal, a casta arinto é uma uva de cor verde-amarelada, de bago pequeno/médio e arredondado e de sabor e aroma citrino. 

Sendo de maneira geral cultivada em todas as regiões de Portugal, é, todavia, em especial nas encostas de Bucelas - que formam um microclima com grandes variações diárias de temperatura, na época de maturação das bagas, e que lhes confere um especial sabor – que encontramos a sua “casa”. Ainda que mal, podemos comparar o arinto a um Riesling, Pinot Blanc ou mesmo ao seco Chenin Blanc. 

GRANDE FINAL 
É assim a vida…, uma estrada que nem aos cinquenta quilómetros chega, esquecida nas “traseiras” da capital, e com tanto para contar. Abandonamos Bucelas e o peculiar e estreito cruzamento com a “Rainha do Oeste” - a irmã Nacional 115 que podem conhecer aqui (link) – e continuamos a rumar a leste para mais uma pequena surpresa.

Passadas que sejam as encostas da Quinta da Romeira podemos encontrar uma acanhada estrada de terra, junto ao Morgado Lusitano, que nos convida a sair do asfalto. Sem temor devemos aceitar o convite. É um par de quilómetros que deve ser feito com a devida precaução em especial na sua zona final e inclinada. 

Foto: Gonçalo Fabião

O marco geodésico que vamos encontrar é a cereja no topo deste verdadeiro “petit gateau” que é a Estrada Nacional 116. Dali, temos uma vista soberba de toda a região, para norte os montes do Oeste, para sul o Tejo e a lezíria lá até onde a vista alcança. Aos nossos pés espalham-se as ruínas Forte da Portela Pequena, obra das Linhas de Torres - o maior e mais eficaz sistema defensivo da Europa. De formato em undecágono, integrava a denominada segunda linha de defesa das Linhas de Torres Vedras, tendo por objectivo bater a via que ligava São Tiago dos Velhos e o Casal da Portela, no sopé da Serra da Aguieira e Portela Pequena, bem como, alguns pontos da antiga Estrada de Alverca entre o referido Casal, a Romeira e a subida da Serra. Por incrível que no local nos pareça, este Forte do qual hoje só restam vestígios contava com 350 homens de Infantaria e 6 peças de Artilharia pesada.

Rica e intensa a Estrada Nacional 116 está a chegar ao fim. E a sugestão que este ESCAPE vos deixa é muito simples. Chegados que sejamos, em Alverca, à rotunda que encontra a Nacional 10 (link), voltemos para trás de regresso à frescura do atlântico na Ericeira. Acreditem que o caminho inverso vos vai parecer uma estrada substancialmente diversa daquela que agora acabaram de percorrer. 

Foto: Gonçalo Fabião
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Quem, o quê, onde, como, quando e porquê – não necessariamente por esta ordem 
A Estrada Nacional 116 - percorrida por este ESCAPE no verão passado aos comandos da Kawasaki Versys 1000 SE (link) e fotografada pela lente do Gonçalo Fabião - não é mas podia muito bem ser conhecida qualquer coisa como a “A Última Estrada do Reino de Portugal”.


A N116 encontra o seu início na deliciosa e atlântica velha vila da Ericeira, hoje primeira Reserva Mundial de Surf da Europa e segunda do Mundo. O episódio da fuga de D. Manuel II para o exílio, da Praia dos Pescadores, tornou-se num marco da história da vila que deve o seu nome à lenda que dita a sua origem enquanto "terra de ouriços", devido aos numerosos ouriços-do-mar que abundavam e ainda habitam algumas das suas praias. Sem glória, podemos encontrar o terminus desta icónica estrada numa rotunda em Alverca do Ribatejo que intercepta a Estrada Nacional 10 também ela já percorrida por este ESCAPE. 

Apesar de olvidada por quase todos, a N116 desempenha ainda hoje papel importante no desenvolvimento social e económico das populações que serve. Da fresca, sonora e intensa maresia do atlântico ao Tejo largo que se aproxima dramaticamente da sua foz, cruza os seculares montes do Oeste numa diagonal fulgurante que beija outras belas Estradas Nacionais da região entre elas a 247, 9 (link), 8 (link), 115 (link) e 10 (link). 

Se localizada noutras paragens deste nosso globo terrestre, teria por certo outro destino que não a ignorância e o esquecimento, tantos os episódios históricos que tem para contar.

5 comentários:

  1. Belo passeio acompanhado de um registo histórico oportuno e bastante didáctico, num país que infelizmente trata muito mal a sua História. Muito mal mmesmo!

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    1. Concordo em tudo. Conhecer o passado é compreender o presente. Abraço

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