Há viagens que parecem condensar uma vida inteira em apenas alguns dias. Esta foi uma delas. Como é que se explica a sensação de levitar sobre arribas no Alentejo, com a estrada a fingir que caminha sobre as águas? Ou de reencontrar velhos amigos para partilhar quilómetros e histórias com a cumplicidade de uma máquina? Como se traduz em palavras a luz do Mira a beijar o Atlântico, ou o silêncio de um sobreiro com quase trezentos anos que viu passar impérios, revoluções e gerações inteiras de homens? Como se explica as estradas nacionais que têm uma voz própria? Que nos falam ao ouvido com sotaque antigo e lembram-nos o tempo em que viajar não era pressa, e sim descoberta.
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Foto: Rad Raven |
Saímos de Lisboa a bordo da Moto Morini X-Cape 700, uma companheira de viagem que, desde cedo, mostrou estar à altura do desafio: leve no guiador, segura na ciclística e confortável mesmo com dois corpos a partilhar o banco e a mochila às costas da Miss Yoshimura. À antiga!
DESTINO SUDOESTE ALENTEJANO
O Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina, criado em 1988, estende-se por mais de 100 quilómetros de litoral, entre a planura dourada do Alentejo e o recorte dramático do Algarve. É uma das últimas grandes áreas costeiras selvagens da Europa, onde o Atlântico chega inteiro, sem filtros, e onde o diálogo entre o mar e a terra se faz em ondas, arribas, dunas e campos de cultivo que parecem estender-se até perder de vista. Mas convém dizer desde já: dentro deste parque há dois territórios com alma própria, irmãos sim, mas distintos na voz e na paisagem — o Sudoeste Alentejano e a Costa Vicentina.
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Foto: Rad Raven |
O Sudoeste Alentejano é o Alentejo à beira-mar. Entre Sines e Odeceixe, encontramos um território onde a luz manda em tudo: nos arrozais de Alcácer do Sal, no casario branco de Vila Nova de Milfontes, nas falésias que descem abruptas ao mar em Malhão ou Almograve. O montado de sobro acompanha a viagem até quase beijar o Atlântico, lembrando que este é um Alentejo de transição, agrícola e marítimo ao mesmo tempo.
Aqui, a vida tem outro compasso: vilas pequenas, pescadores que ainda trabalham com artes antigas, campos de tomate e batata que convivem com aves migratórias que encontram no estuário do Mira e nas arribas o seu refúgio. É uma costa mais serena, mais luminosa, mais ampla, com a planície alentejana sempre à espreita por trás das dunas. É aqui que se sente que o mar e a terra são cúmplices, não rivais.
Mais a sul, a história muda de tom. A Costa Vicentina, já no Algarve, é a versão agreste, indomável e dramática do mesmo parque. Entre Odeceixe e Burgau, as arribas erguem-se como muralhas contra o Atlântico, o relevo é mais acidentado, a vegetação mais resistente ao vento e ao sal, e as praias surgem em reentrâncias escondidas, como segredos guardados a sete chaves. É uma costa de pescadores de percebes que desafiam o mar, de trilhos vertiginosos, de um mar mais bravo e de um horizonte mais agreste.
Aqui o sol já não ilumina em dourado: corta em contrastes fortes, negros e verdes contra o azul profundo do oceano. É a costa dos surfistas, dos caminhantes do trilho dos pescadores, de quem procura ainda mais isolamento e um contacto cru com a natureza.
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Foto: Rad Raven |
O Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina é uma só unidade administrativa, mas na verdade é feito de dois mundos complementares. O Sudoeste Alentejano oferece o equilíbrio entre a planície e o mar, uma costa larga, iluminada e aberta, onde ainda se sente a cadência tranquila do Alentejo. A Costa Vicentina, pelo contrário, é a face agreste e indomável do litoral português, onde o Atlântico mostra a sua força sem concessões. Desta vez escolhemos o equilíbrio e deixamos a indomável Costa Vicentina para outra viagem.
DIA 1 – LIBERTAR-SE DA SELVA, LUZ SOBRE O SADO E CHEGADA AO MAR
Saímos de Alfragide cedo, do betão e da rotina. E logo que cruzámos a Ponte Vasco da Gama sentimos o estuário do Tejo a exalar promessa. O céu era azul de rompante, o sol dourado da manhã mergulhava nas águas, e o estuário parecia um espelho partido de luz. Depois, as salinas do Samouco, aves a riscar o ar, o cheiro de água salgada misturado com a terra húmida – cada quilómetro um reinício.
A Estrada Nacional 5 apareceu como velha amiga, com rugas, curvas e segredos. “Road to Nowhere” gosto de lhe chamar – mas ela sabe levar-nos a todo o lado. Cruzámos montado, sobreiros e azinheiras que guardam o passado, a memória da cortiça, do silêncio e do vento.
A primeira e obrigatória paragem foi no Sobreiro Assobiador, em Águas de Moura, algo que não é só árvore, mas símbolo. Plantado por volta de 1783 (há cerca de 234-235 anos), classificado como Árvore de Interesse Público desde 1988, eleito “Árvore Europeia do Ano” em 2018 com mais de 26.600 votos.
Este sobreiro, com mais de 20 extrações de cortiça desde 1820, produziu em 1991 cerca de 1.200 kg de cortiça, volume suficiente para fazer mais de cem mil rolhas. O seu tronco tem perímetro de ~4,15 m, altura de ~16 metros e copa de quase 30 metros — ramos que quase tocam no chão, abrigo de pássaros, guarida de histórias.
Seguimos depois para Alcácer do Sal, com o Sado a espelhar brilhos e a luz a dançar no casario branco, lembrando-nos das raízes muçulmanas que moldaram este sul. A estrada oscila entre encanto e monotonia; chegada a Sines, zona industrial que pouco acalma a alma, mas que prepara o cenário para São Torpes, onde o mar reaparece, o ar suaviza, e Porto Covo surge como miragem de serenidade. O jantar farto foi no Pátio Alentejano, já em Vila Nova de Milfontes. Terra, mar, azeite e conversa farta.
DIA 2 – ESTRADA COMO ALMA, AMIGOS E O ABRAÇO DO ATLÂNTICO
Despertámos mais tarde, o corpo ainda a digerir as emoções do dia anterior. Pequeno-almoço lento, cheio de café, pão quente e expectativa. A estrada de terra em Almograve foi um épico à parte: sobe, desce, bordas de arribas, o vento a sacudir barreiras invisíveis, sensação de que a estrada nos sustentava sob rodas, como se andássemos suspensos entre terra e abismo. Aqui, estrada é personagem curvada, forte, generosa.
Montado, de novo, mas mais íntimo: silêncios, cheiro a cortiça, folhas secas sob a moto. Depois Cabo Sardão, Praia das Furnas, Porto das Barcas — cada pedaço de costa com identidade, cada curva com promessa de vista, cada miradouro com sal. Zambujeira do Mar como eterna, imaculada, onde o Oceano não disfarça poder, onde foto alguma lhe faz justiça.
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Foto: Rad Raven |
Encontro com Rad Raven e Lady Raven, amigos de estrada e com corações que sabem de viagens. Histórias sob o capacete, risos no depósito, imagens desenhadas pelo escape da moto. E a Moto Marini X-Cape 700, que não era só máquina — era o corpo que sentia os solos, que vibrava nas lombas, que se esticava no asfalto aceso de luz.
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Foto: Rad Raven |
O percurso até Odeceixe trouxe-nos o encontro com o Atlântico no seu estado mais cru. Mimada que foi esta Moto Marini X-Cape 700 pela lente do Rad Raven, o regresso deu-se pela Estrada Nacional 120 e pelas curvas da Serra do Cercal. A Nacional 390 também apareceu no mapa, curta mas intensa, como um verso bem talhado, quase poema rodado. Milfontes de novo, mar no horizonte, jantar simpático no Manjedoura com vinho bom e conversa solta.
DIA 3 – A DESPEDIDA CALMANTE, O MALHÃO E O SOL A PÔR-SE NO ATLÂNTICO
O dia amanheceu suave. Despedida em Vila Nova de Milfontes depois de novo pequeno-almoço forte, com sol a prometer. A marginal, a foz do Rio Mira: água doce encontra água salgada, borbulhas no estuário, reflexos, calor da manhã, luas líquidas. Explosão de luz sobre o Mira.
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Foto: Rad Raven |
Nisto surge o Malhão como porto seguro para o corpo exausto: praia selvagem, areia consciente, ondas que não exigem mais do que entrega. Banho de iodo, de sal, deixar o tempo cair sem pressa. A moto estacionada à sombra, o vento a brincar com as roupas, o silêncio do Atlântico lembrando segredos de surfistas e antigos visitantes que somente ali ousavam ficar.
E, no regresso, a estrada costeira até São Torpes, com a Golden Hour incandescente manchando o mar, o sol a entornar-se no horizonte. As últimas cores do dia, últimas curvas da costa. O regresso de novo por estradas nacionais foi feito já de noite. E com a Ponte Vasco da Gama, diferente da manhã luminosa. Mais suave, mais plena.
UMA COMPANHEIRA SURPREENDENTE
Se a Costa Alentejana foi o cenário, a Moto Morini X-Cape 700 foi a verdadeira parceira de viagem. Viajámos a dois, com mochila às costas, percorremos centenas de quilómetros de asfalto e de terra, enfrentámos vento, curvas e rectas intermináveis — e a moto nunca se queixou. Pelo contrário: mostrou conforto inesperado, uma proteção aerodinâmica que fez diferença, uma ciclística equilibrada que transmitiu confiança, e um motor sempre disponível, pronto a responder.
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Foto: Rad Raven |
Acima de tudo, foi o ecletismo que nos conquistou: uma moto que se adapta, que aceita estrada e fora de estrada, que transporta bagagem e cumplicidade sem perder a leveza de espírito. Uma moto que não nos deixou ficar mal — pelo contrário, surpreendeu-nos em cada quilómetro. E é por isso que esta viagem não se conta apenas como uma travessia da Costa Alentejana, mas como uma descoberta: a de que a X-Cape 700 é muito mais do que esperávamos.