segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Três dias de luz, estrada e mar com a Moto Morini X-Cape 700

Há viagens que parecem condensar uma vida inteira em apenas alguns dias. Esta foi uma delas. Como é que se explica a sensação de levitar sobre arribas no Alentejo, com a estrada a fingir que caminha sobre as águas? Ou de reencontrar velhos amigos para partilhar quilómetros e histórias com a cumplicidade de uma máquina? Como se traduz em palavras a luz do Mira a beijar o Atlântico, ou o silêncio de um sobreiro com quase trezentos anos que viu passar impérios, revoluções e gerações inteiras de homens? Como se explica as estradas nacionais que têm uma voz própria? Que nos falam ao ouvido com sotaque antigo e lembram-nos o tempo em que viajar não era pressa, e sim descoberta. 

Foto: Rad Raven

Saímos de Lisboa a bordo da Moto Morini X-Cape 700, uma companheira de viagem que, desde cedo, mostrou estar à altura do desafio: leve no guiador, segura na ciclística e confortável mesmo com dois corpos a partilhar o banco e a mochila às costas da Miss Yoshimura. À antiga! 

DESTINO SUDOESTE ALENTEJANO 
O Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina, criado em 1988, estende-se por mais de 100 quilómetros de litoral, entre a planura dourada do Alentejo e o recorte dramático do Algarve. É uma das últimas grandes áreas costeiras selvagens da Europa, onde o Atlântico chega inteiro, sem filtros, e onde o diálogo entre o mar e a terra se faz em ondas, arribas, dunas e campos de cultivo que parecem estender-se até perder de vista. Mas convém dizer desde já: dentro deste parque há dois territórios com alma própria, irmãos sim, mas distintos na voz e na paisagem — o Sudoeste Alentejano e a Costa Vicentina. 

Foto: Rad Raven

O Sudoeste Alentejano é o Alentejo à beira-mar. Entre Sines e Odeceixe, encontramos um território onde a luz manda em tudo: nos arrozais de Alcácer do Sal, no casario branco de Vila Nova de Milfontes, nas falésias que descem abruptas ao mar em Malhão ou Almograve. O montado de sobro acompanha a viagem até quase beijar o Atlântico, lembrando que este é um Alentejo de transição, agrícola e marítimo ao mesmo tempo. 


Aqui, a vida tem outro compasso: vilas pequenas, pescadores que ainda trabalham com artes antigas, campos de tomate e batata que convivem com aves migratórias que encontram no estuário do Mira e nas arribas o seu refúgio. É uma costa mais serena, mais luminosa, mais ampla, com a planície alentejana sempre à espreita por trás das dunas. É aqui que se sente que o mar e a terra são cúmplices, não rivais. 


Mais a sul, a história muda de tom. A Costa Vicentina, já no Algarve, é a versão agreste, indomável e dramática do mesmo parque. Entre Odeceixe e Burgau, as arribas erguem-se como muralhas contra o Atlântico, o relevo é mais acidentado, a vegetação mais resistente ao vento e ao sal, e as praias surgem em reentrâncias escondidas, como segredos guardados a sete chaves. É uma costa de pescadores de percebes que desafiam o mar, de trilhos vertiginosos, de um mar mais bravo e de um horizonte mais agreste. 


Aqui o sol já não ilumina em dourado: corta em contrastes fortes, negros e verdes contra o azul profundo do oceano. É a costa dos surfistas, dos caminhantes do trilho dos pescadores, de quem procura ainda mais isolamento e um contacto cru com a natureza. 

Foto: Rad Raven

O Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina é uma só unidade administrativa, mas na verdade é feito de dois mundos complementares. O Sudoeste Alentejano oferece o equilíbrio entre a planície e o mar, uma costa larga, iluminada e aberta, onde ainda se sente a cadência tranquila do Alentejo. A Costa Vicentina, pelo contrário, é a face agreste e indomável do litoral português, onde o Atlântico mostra a sua força sem concessões. Desta vez escolhemos o equilíbrio e deixamos a indomável Costa Vicentina para outra viagem.

DIA 1 – LIBERTAR-SE DA SELVA, LUZ SOBRE O SADO E CHEGADA AO MAR 
Saímos de Alfragide cedo, do betão e da rotina. E logo que cruzámos a Ponte Vasco da Gama sentimos o estuário do Tejo a exalar promessa. O céu era azul de rompante, o sol dourado da manhã mergulhava nas águas, e o estuário parecia um espelho partido de luz. Depois, as salinas do Samouco, aves a riscar o ar, o cheiro de água salgada misturado com a terra húmida – cada quilómetro um reinício.


A Estrada Nacional 5 apareceu como velha amiga, com rugas, curvas e segredos. “Road to Nowhere” gosto de lhe chamar – mas ela sabe levar-nos a todo o lado. Cruzámos montado, sobreiros e azinheiras que guardam o passado, a memória da cortiça, do silêncio e do vento. 

A primeira e obrigatória paragem foi no Sobreiro Assobiador, em Águas de Moura, algo que não é só árvore, mas símbolo. Plantado por volta de 1783 (há cerca de 234-235 anos), classificado como Árvore de Interesse Público desde 1988, eleito “Árvore Europeia do Ano” em 2018 com mais de 26.600 votos. 


Este sobreiro, com mais de 20 extrações de cortiça desde 1820, produziu em 1991 cerca de 1.200 kg de cortiça, volume suficiente para fazer mais de cem mil rolhas. O seu tronco tem perímetro de ~4,15 m, altura de ~16 metros e copa de quase 30 metros — ramos que quase tocam no chão, abrigo de pássaros, guarida de histórias. 


Seguimos depois para Alcácer do Sal, com o Sado a espelhar brilhos e a luz a dançar no casario branco, lembrando-nos das raízes muçulmanas que moldaram este sul. A estrada oscila entre encanto e monotonia; chegada a Sines, zona industrial que pouco acalma a alma, mas que prepara o cenário para São Torpes, onde o mar reaparece, o ar suaviza, e Porto Covo surge como miragem de serenidade. O jantar farto foi no Pátio Alentejano, já em Vila Nova de Milfontes. Terra, mar, azeite e conversa farta.

DIA 2 – ESTRADA COMO ALMA, AMIGOS E O ABRAÇO DO ATLÂNTICO
Despertámos mais tarde, o corpo ainda a digerir as emoções do dia anterior. Pequeno-almoço lento, cheio de café, pão quente e expectativa. A estrada de terra em Almograve foi um épico à parte: sobe, desce, bordas de arribas, o vento a sacudir barreiras invisíveis, sensação de que a estrada nos sustentava sob rodas, como se andássemos suspensos entre terra e abismo. Aqui, estrada é personagem curvada, forte, generosa. 


Montado, de novo, mas mais íntimo: silêncios, cheiro a cortiça, folhas secas sob a moto. Depois Cabo Sardão, Praia das Furnas, Porto das Barcas — cada pedaço de costa com identidade, cada curva com promessa de vista, cada miradouro com sal. Zambujeira do Mar como eterna, imaculada, onde o Oceano não disfarça poder, onde foto alguma lhe faz justiça. 

Foto: Rad Raven

Encontro com Rad Raven e Lady Raven, amigos de estrada e com corações que sabem de viagens. Histórias sob o capacete, risos no depósito, imagens desenhadas pelo escape da moto. E a Moto Marini X-Cape 700, que não era só máquina — era o corpo que sentia os solos, que vibrava nas lombas, que se esticava no asfalto aceso de luz. 

Foto: Rad Raven

O percurso até Odeceixe trouxe-nos o encontro com o Atlântico no seu estado mais cru. Mimada que foi esta Moto Marini X-Cape 700 pela lente do Rad Raven, o regresso deu-se pela Estrada Nacional 120 e pelas curvas da Serra do Cercal. A Nacional 390 também apareceu no mapa, curta mas intensa, como um verso bem talhado, quase poema rodado. Milfontes de novo, mar no horizonte, jantar simpático no Manjedoura com vinho bom e conversa solta. 

DIA 3 – A DESPEDIDA CALMANTE, O MALHÃO E O SOL A PÔR-SE NO ATLÂNTICO 
O dia amanheceu suave. Despedida em Vila Nova de Milfontes depois de novo pequeno-almoço forte, com sol a prometer. A marginal, a foz do Rio Mira: água doce encontra água salgada, borbulhas no estuário, reflexos, calor da manhã, luas líquidas. Explosão de luz sobre o Mira. 

Foto: Rad Raven

Nisto surge o Malhão como porto seguro para o corpo exausto: praia selvagem, areia consciente, ondas que não exigem mais do que entrega. Banho de iodo, de sal, deixar o tempo cair sem pressa. A moto estacionada à sombra, o vento a brincar com as roupas, o silêncio do Atlântico lembrando segredos de surfistas e antigos visitantes que somente ali ousavam ficar. 


E, no regresso, a estrada costeira até São Torpes, com a Golden Hour incandescente manchando o mar, o sol a entornar-se no horizonte. As últimas cores do dia, últimas curvas da costa. O regresso de novo por estradas nacionais foi feito já de noite. E com a Ponte Vasco da Gama, diferente da manhã luminosa. Mais suave, mais plena. 

UMA COMPANHEIRA SURPREENDENTE 
Se a Costa Alentejana foi o cenário, a Moto Morini X-Cape 700 foi a verdadeira parceira de viagem. Viajámos a dois, com mochila às costas, percorremos centenas de quilómetros de asfalto e de terra, enfrentámos vento, curvas e rectas intermináveis — e a moto nunca se queixou. Pelo contrário: mostrou conforto inesperado, uma proteção aerodinâmica que fez diferença, uma ciclística equilibrada que transmitiu confiança, e um motor sempre disponível, pronto a responder. 

Foto: Rad Raven

Acima de tudo, foi o ecletismo que nos conquistou: uma moto que se adapta, que aceita estrada e fora de estrada, que transporta bagagem e cumplicidade sem perder a leveza de espírito. Uma moto que não nos deixou ficar mal — pelo contrário, surpreendeu-nos em cada quilómetro. E é por isso que esta viagem não se conta apenas como uma travessia da Costa Alentejana, mas como uma descoberta: a de que a X-Cape 700 é muito mais do que esperávamos.

domingo, 12 de outubro de 2025

Triumph poderá vir a ser representada em Portugal pela Multimoto

Corre nos bastidores do sector das duas rodas em Portugal um rumor que, a confirmar-se, poderá redesenhar o mapa da representação de marcas premium no nosso país. Alguns dizem de que a Triumph Motorcycles poderá passar a ser oficialmente representada e distribuída em Portugal pelo Grupo Multimoto já em 2026. 


Ainda nada foi confirmado — todavia há peças neste tabuleiro que encaixam com demasiada precisão para ser ignoradas. 

TRIUMPH MOTORCYCLES — HISTÓRIA, IDENTIDADE E ESTRATÉGIA GLOBAL 
A história da Triumph remonta a 1902 no Reino Unido, quando Siegfried Bettmann lançou as bases daquela que viria a ser uma das mais emblemáticas marcas britânicas de motos. Ao longo das décadas, a Triumph passou por períodos de glória e crise, ressurgindo nos anos 1990 com uma nova filosofia industrial e de design. 

Hoje, a marca tem a sua sede e centro de desenvolvimento em Hinckley, no Reino Unido. Parte significativa da produção continua a ser feita em solo britânico, nomeadamente nos modelos de maior valor acrescentado, no entanto uma fatia relevante da montagem é assegurada nas instalações da marca na Tailândia, reforçando a sua competitividade global sem abdicar do ADN europeu. Este equilíbrio entre tradição e escala industrial tem sido uma das chaves do sucesso moderno da Triumph no mercado mundial. 

GRUPO MULTIMOTO — UMA POTÊNCIA NACIONAL SOBRE DUAS RODAS 
Fundado em 1989, o Grupo Multimoto tem construído ao longo de décadas uma posição sólida como um dos maiores importadores e distribuidores de motociclos em Portugal. Atualmente, representa marcas como Kawasaki, Bimota, Kymco, Benelli, Keeway e mais recentemente Morbidelli, Cyclone e Benda para além da CFMOTO, assegurando não apenas a distribuição nacional, mas também redes de concessionários, serviços pós-venda e logística especializada. 


Com presença em todo o país, a Multimoto tornou-se uma referência no sector, combinando conhecimento técnico com uma estrutura operacional robusta. O seu historial e experiência tornam-na uma parceira natural para marcas internacionais que procuram consolidar presença no mercado português. 

GRUPO SALVADOR CAETANO — UM GIGANTE AUTOMÓVEL A ENTRAR NO MUNDO DAS MOTOS 
O Grupo Salvador Caetano é um dos maiores grupos de distribuição automóvel em Portugal, com décadas de experiência no sector automóvel. Recentemente, o grupo adquiriu cerca de 75% da Multimoto, numa operação que não passou despercebida no mercado. 


Enquanto o Grupo Salvador Caetano traz consigo uma estrutura financeira sólida e know-how em gestão de redes de distribuição automóvel, a Multimoto oferece experiência profunda no universo das duas rodas. Esta complementaridade entre os dois grupos abre novas perspetivas estratégicas — e é aqui que a possível entrada da Triumph em cena ganha especial relevo. 

O RUMOR — TRIUMPH E MULTIMOTO, UM ENCAIXE LÓGICO? 
Até recentemente, circulava a informação de que a representação da Triumph em Portugal poderia vir a ser assumida diretamente pela Grupo Salvador Caetano a partir de 2026. No entanto, com a aquisição da maioria do capital da Multimoto por parte do Grupo Salvador Caetano, a equação poderá ter mudado. 

O rumor aponta agora para que a operação possa ser conduzida pela Multimoto, o que, olhando para a experiência e posicionamento de cada grupo, faz todo o sentido. O Grupo Salvador Caetano mantém o controlo estratégico, enquanto a Multimoto assume a gestão operacional — numa jogada que poderá beneficiar tanto a marca como os concessionários e clientes portugueses.


Atualização – 12 de outubro de 2025, 17h20 

Este post foi actualizado para corrigir um lapso importante. Onde se lia Caetano Baviera ou apenas Baviera, deve agora ler-se Grupo Salvador Caetano. Esclarecemos que não é a Baviera que detém 75% do Grupo Multimoto, mas sim o Grupo Salvador Caetano. 

A Caetano Baviera é apenas uma das empresas que integram este grupo. A Baviera, enquanto empresa, não tem qualquer relação directa com o Grupo Multimoto, excepto por fazer parte do Grupo Salvador Caetano. 

Sublinhamos que o Grupo Salvador Caetano é, de facto, o accionista maioritário do Grupo Multimoto e de todas as empresas que dele fazem parte a nível mundial.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Marc Márquez – A Queda e a Ressurreição de um Génio das Pistas

Em julho de 2020, no circuito de Jerez, Marc Márquez sofreu a queda que mudaria para sempre a sua carreira. O som seco do impacto, seguido do silêncio pesado no paddock, foi mais do que uma imagem de corrida: foi o início de um calvário. O braço direito fraturado exigiu uma operação imediata. Dias depois, o piloto surpreendia o mundo ao tentar regressar em tempo recorde. Mas a pressa cobrou um preço elevado. A placa metálica que sustentava o úmero cedeu, e com ela desabou a ilusão de uma recuperação rápida. 


Seguiram-se meses de dor e três operações sucessivas. Entre fisioterapia, infeções e noites em claro, Marc enfrentava não apenas a lentidão da cura, mas também o medo de nunca mais voltar ao topo. O gladiador das pistas, que parecia feito de aço, descobria a fragilidade do corpo humano. Para quem vive a 300 km/h, cada semana de incerteza era uma tortura. O herói, outrora invencível, era agora apenas um homem diante do espelho. 

AS RAÍZES EM CERVERA 
Para compreender a dimensão desta queda, é preciso recuar às origens. Marc Márquez nasceu em 1993, em Cervera, uma pequena cidade catalã de ruas estreitas e horizontes dourados no verão. Filho de Julià e Roser, cresceu num ambiente familiar de proximidade e esforço. O pai acompanhava-o desde cedo nas primeiras voltas, ajustando carburadores e cuidando de cada detalhe técnico. A mãe, discreta e firme, representava o equilíbrio, a âncora emocional. O irmão mais novo, Álex, tornar-se-ia cúmplice inseparável, parceiro de aventuras e, mais tarde, companheiro no paddock. 


Com apenas quatro anos, Marc recebeu a sua primeira mini-mota. Não era um brinquedo: era uma promessa. Passava horas a percorrer terrenos de terra batida, improvisando circuitos, caindo e levantando-se vezes sem conta. Aos sete anos começou a competir em provas regionais. Franzino, mas destemido, revelava uma capacidade rara de levar a mota ao limite. A cada curva mostrava que o medo não fazia parte do seu vocabulário. 


O caminho até ao Mundial foi feito de sacrifícios. A família percorria milhares de quilómetros, muitas vezes em carrinhas modestas, para estar presente em cada corrida. Os orçamentos eram apertados, mas o sonho não conhecia hesitações. Em 2008, com 15 anos, Marc estreava-se no Mundial de 125cc. Dois anos depois, conquistava o título da categoria, transformando-se no mais jovem campeão da classe. 

A ASCENSÃO IMPARÁVEL
Em 2011, já em Moto2, uma queda em Sepang trouxe-lhe um novo desafio: uma lesão ocular que lhe causou diplopia, visão dupla. Parecia que a carreira podia terminar antes de começar. Mas Marc regressou em 2012, mais forte, para conquistar o título de Moto2. O episódio, longe de o quebrar, revelou a sua fibra interior: cair era apenas uma etapa para regressar mais alto. 


No ano seguinte, deu o salto para o MotoGP com a Honda. E a estreia foi um terramoto. Em 2013 tornou-se o mais jovem campeão de sempre da categoria rainha. Seguiram-se títulos em 2014, 2016, 2017, 2018 e 2019. O estilo agressivo, as ultrapassagens no limite e os “salvamentos” impossíveis, em que parecia desafiar as leis da física, transformaram-no em ícone e lenda viva. O nome Márquez tornou-se sinónimo de espetáculo e de audácia.

Durante anos, parecia intocável. Rivais históricos como Valentino Rossi ou Jorge Lorenzo tiveram de se render ao fenómeno. Mas a glória, que parecia eterna, seria interrompida de forma cruel. 

O PESO DAS SOMBRAS
A queda em Jerez, em 2020, não apenas lhe partiu o braço: quebrou o seu domínio absoluto. Dois anos praticamente afastado das pistas, mais dois em recuperação intermitente, transformaram-se num suplício. A cada regresso, o corpo traía-o. Vitórias pontuais alimentavam a esperança, mas a consistência fugia-lhe das mãos. 


E quando parecia que a tempestade estava a acalmar, surgiu novo fantasma. Em 2021, após uma queda em Portimão, a diplopia regressou. O problema de visão dupla, que já o atormentara dez anos antes, voltava a ameaçar-lhe a carreira. Para um piloto que depende da precisão de cada milésimo, a visão turva era um castigo cruel. Mais consultas, mais dúvidas, mais noites em claro. Marc confessaria mais tarde que esse foi um dos momentos em que mais perto esteve de desistir.

Em Cervera, no entanto, encontrou sempre refúgio. Entre os amigos de infância, a família e sobretudo o irmão Álex, reconstruiu a confiança. Cada treino físico, cada quilómetro em bicicleta, cada sessão de fisioterapia era um ato de resistência. Já não se tratava apenas de recuperar um braço ou estabilizar os olhos: tratava-se de recuperar a identidade. 

O REGRESSO E O LEGADO 
Em 2025, depois de quatro anos de sombras e tormentos, Marc Márquez voltou a tocar o céu. Conquistou novamente o título mundial de MotoGP. Não era apenas mais um troféu na vitrina: era o culminar de uma epopeia de dor, sacrifício e resiliência. 


A sua história não se resume a nove títulos mundiais ou a ultrapassagens impossíveis. É a história de uma criança de Cervera que ousou sonhar, de uma família que acreditou contra todas as probabilidades, de um homem que enfrentou as suas fragilidades sem nunca abandonar a paixão. Hoje, Marc Márquez é mais do que um campeão: é símbolo de superação, prova viva de que a grandeza não está em nunca cair, mas em levantar-se sempre. 

O legado de Márquez ficará para além das estatísticas. Cada cicatriz no braço, cada sombra na visão, cada lágrima derramada fora das câmaras fazem parte da sua verdadeira vitória. Um hino à resiliência humana. Uma lição eterna: os campeões não se medem apenas pelas voltas mais rápidas, mas pela capacidade de recomeçar.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Miguel Oliveira, o desperdício de uma oportunidade e o silêncio das marcas

O fim da ligação de Miguel Oliveira ao MotoGP marca um ponto de viragem para o motociclismo português. Foram quatro épocas com a KTM, duas com a Aprilia e uma com a Yamaha. Agora, o piloto português ruma ao Mundial de Superbike, ao comando da BMW oficial. 


É uma transição que merece respeito e entusiasmo, mas que não pode ser analisada apenas pela perspetiva desportiva. Este é também um momento para olharmos, sem rodeios, para a forma como as marcas de motos em Portugal souberam — ou não souberam — comunicar em torno de Miguel Oliveira. 

KTM: UM COMEÇO PROMISSOR SEM CONTINUIDADE 
A KTM foi, de todas as marcas, a que mais se aproximou de um esforço real. Ajudou a promover ações pontuais, como o evento de 2021 que levou o Miguel por estrada de Almada até Portimão, no Algarve, tendo Oliveira rodado numa moto da marca e criando uma ponte clara entre a competição e o mercado português. Contudo, tudo ficou mais ou menos por aí. Sem continuidade, sem estratégia, sem uma narrativa sustentada. A energia inicial diluiu-se e o potencial de comunicação acabou por se perder. 



APRILIA: A AUSÊNCIA ABSOLUTA
Se na KTM ainda houve lampejos, na Aprilia a palavra-chave foi ausência. Dois anos com Miguel Oliveira ao mais alto nível, e as estruturas portuguesas não foram capazes de convocar o piloto para uma única ação significativa de suporte aos seus produtos. Esta incapacidade é reveladora. Nada ficou na memoria. Os fãs da marca em Portugal ficaram à margem da relevância mediática que poderiam — e deveriam — ter saboreado. 



YAMAHA: O CASO MAIS GRAVE 
Mas o caso da Yamaha é aquele que exige maior atenção e maior severidade. A Yamaha é uma marca histórica em Portugal, que liderou o mercado durante anos e que continua há décadas no top 2 das vendas de motos. Uma marca com dezenas de milhares de clientes, fãs e utilizadores fiéis. Uma marca que, além do mais, tem no seu catálogo motos de estrada diretamente ligadas ao ADN da competição. 

E, ainda assim, quando teve um piloto português no MotoGP, a Yamaha Portugal revelou uma incompetência total. Não houve uma única ação de comunicação que capitalizasse a presença de Miguel Oliveira. Não houve ativação da marca, não houve envolvimento com a comunidade, não houve visão. Pior: o piloto saiu pela porta pequena, num ambiente quase de despedimento. Todo este lamentável cenário é apenas um corolário de décadas de uma estratégia de comunicação ultrapassada, ineficaz e incompreensível. Vergonha alheia. 


A Yamaha Portugal perdeu a liderança do mercado há décadas e nunca mais a recuperou. Perdeu a oportunidade de transformar Miguel Oliveira numa bandeira da marca, perdeu relevância junto de uma comunidade que procura identificação, paixão e proximidade. E perde, acima de tudo, credibilidade enquanto estrutura. Vergonha alheia, sublinho sem pudor

Em 2025, comunicar não é opcional; é central para a sobrevivência de qualquer marca. O que assistimos na Yamaha é a prova clara de que a sua estrutura nacional não tem noção do que é comunicar no século XXI. É hora de um wake-up call. E, se a casa-mãe se importa minimamente com o mercado português, deveria olhar para esta situação como um sinal de alarme e intervir de forma decisiva. 

BMW: A DIFERENÇA DE QUEM SABE COMUNICAR 
O contraste não podia ser maior com a BMW. Apesar de podermos — e devemos — questionar algumas escolhas estratégicas da BMW Motorrad Portugal, há um facto que não pode ser ignorado: a marca sabe comunicar. É consistente, investe na proximidade com a comunidade e sabe tirar partido da ligação emocional que os motociclistas portugueses estabelecem com os seus produtos. 

A chegada de Miguel Oliveira ao Mundial de Superbike, integrado na equipa oficial da BMW, será inevitavelmente explorada pela marca como uma alavanca de comunicação. Provavelmente haverá ativações, campanhas, narrativas. Miguel será colocado no centro da mensagem, e a sua imagem será usada para reforçar a ligação da BMW ao mercado português. Não é um palpite: é uma certeza, porque a BMW já deu provas de que sabe trabalhar o valor simbólico dos seus pilotos e dos seus produtos. 

O QUE FICA PARA A HISTÓRIA 
A história de Miguel Oliveira no MotoGP é também a história de como as marcas em Portugal desperdiçaram uma oportunidade única de comunicar o motociclismo de forma diferente. A KTM tentou mas desistiu, a Aprilia (aparentemente) ignorou, a Yamaha falhou de forma gritante. A BMW, agora, herda não apenas um piloto de exceção, mas também a responsabilidade de mostrar que em Portugal ainda é possível fazer comunicação inteligente, estruturada e eficaz no setor das motos. 

Para Miguel, abre-se um novo capítulo. Para nós, que olhamos o motociclismo com paixão mas também com espírito crítico, fica a certeza amarga: tivemos um português no topo do mundo e, fora da pista, quase ninguém no motociclismo soube o que fazer com isso.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Royal Enfield Classic 350: quando a estrada reclama elegância

Há motos que não precisam de justificar a sua existência com números, potências ou recordes de velocidade. Há motos que vivem de outra matéria-prima: história, emoção e presença. A Royal Enfield Classic 350 é uma dessas raridades. Aqui não há pressa de performance: há o compasso pausado de uma batida clássica, pensado para quem quer andar devagar, mas sentir intensamente. 


Mais do que uma ficha técnica, a Classic 350 é um modo de vida. É uma Royal Enfield, e isso basta para sabermos que não é apenas uma moto: é um símbolo. Nascida da tradição de uma marca que começou no século XIX e que encontrou, na Índia, a sua casa eterna, esta Classic é o elo que liga o passado ao presente. É o eco moderno da mítica Bullet 350, a moto que atravessou décadas como sinónimo de fiabilidade, simplicidade e caráter. Agora, com a nova plataforma J-Series, a Royal Enfield deu-lhe um coração renovado, mais suave e silencioso, sem trair o compasso pausado da sua batida monocilíndrica. 

RICA GENÉTICA 
A Royal Enfield tem, pois, uma herança centenária. Nascida em Inglaterra no final do século XIX e, desde meados do século XX, enraizada na Índia. O nome “Classic” não é apenas marketing: evoca a linhagem das motos militares e civis que marcaram as décadas de 1940 e 1950, sobretudo a incontornável Bullet. Na verdade, a Classic 350 nasce como sucessora espiritual da Bullet 350, uma moto que atravessou gerações, sobretudo no mercado indiano, onde se tornou símbolo de fiabilidade, simplicidade e estilo. 


O projeto da atual Classic 350 resulta assim da modernização da plataforma da Meteor 350, estreando o novo motor monocilíndrico (monocilíndrico de 349 cc, refrigerado a ar/óleo, injeção eletrónica, cerca de 20,2 cv às 6.100 rpm e 27 Nm de binário às 4.000 rpm.) chamado J-Series – silencioso, robusto e adaptado às exigências contemporâneas. Olhamos para ela não há enganos: guarda-lamas largos, linhas arredondadas, cromados, a posição de condução ereta e descontraída — tudo na Royal Enfield Classic 350 respira anos 50. 


No entanto, ao girar a chave, encontramos a certeza de que não estamos perante uma peça de museu. O motor de 349 cc, injeção eletrónica e caixa de cinco velocidades dá-lhe uma alma dócil, perfeita para quem quer rolar devagar, apreciar o caminho e sentir o mundo a passar em câmara lenta. 

TRANSVERSAL E INTEMPORAL 
Com quase 200 quilos em ordem de marcha, a Classic 350 não é leve, todavia a sua ciclística estável e previsível garante confiança a qualquer nível de experiência – não abusem. Os travões com ABS de dois canais asseguram a segurança, e o conforto da suspensão convida a passeios longos por estradas secundárias, ladeiras serranas ou margens de rio ao fim da tarde. 



Mas afinal, esta moto foi desenhada para quem? Para o nostálgico que quer ter na garagem uma moto com espírito retro sem as dores de cabeça de uma clássica verdadeira. Para o iniciado que encontra aqui uma escola paciente e acessível. Para o viajante urbano que prefere fazer do quotidiano um ritual estético. E, sobretudo, para quem não tem pressa — porque a Classic 350 é um convite à contemplação, ao prazer de andar de moto como se andava antigamente: devagar, mas intensamente.

Quem não resistiu a ter mais uma experiência na sua construção enquanto motociclista foi a Miss Yoshimura. Terá gostado? Eu tinha muitas duvidas. Vamos ouvir. 

Royal Enfield Classic 350 conquistou-me pelo estilo, pela serenidade e pela forma como no faz sentir. Poucas motos conduzi para além da minha própria BLU e, confesso, no início havia receio. Não era minha, não a conhecia, e por isso escolhi o primeiro dia para ser apenas passageira. Mas bastou sentar-me para compreender que havia ali algo especial. O conforto, a segurança e a confiança foram imediatos — quase como um déjà vu da sensação de estar numa clássica que já me é familiar. Amor à primeira voltinha... 

No dia seguinte, chegou a vez de pegar no guiador. E a surpresa foi ainda maior: bastaram poucos metros para sentir que estava em casa. A Royal Enfield Classic 350 tem essa magia — transforma o receio em conforto e o desconhecido em familiaridade. Cada arranque é suave, cada curva tem ritmo, e cada quilómetro devolve a quem conduz a sensação de bem-estar. 

Na marginal, desliza com elegância. No trânsito de Lisboa, às 20h de um domingo mais congestionado do que seria de esperar, mostrou resiliência e confiança. Foi precisamente aí, no meio dos ziguezagues entre carros, que percebi o valor desta moto: ela não é apenas uma clássica de estilo intemporal; é também uma companheira que dá conforto mesmo nas situações mais exigentes. 


Se já me tinha dado a sensação de realeza na sua estética e presença, foi na condução real, no dia a dia, que me fez sentir parte dessa realeza. E é por isso que digo: a Royal Enfield Classic 350 não é apenas uma moto para ser admirada. É para ser vivida.

SABER SABOREAR O TEMPO
Assim a Royal Enfield Classic 350 almeja trazer o passado ao presente. Pretende ser um ponto de encontro entre gerações: um jovem pode sentir-se parte de uma tradição, um veterano pode recordar o motociclismo das suas origens. É uma proposta emocional, muito mais próxima de um estilo de vida do que de uma ficha técnica. Uma moto para saborear estradas nacionais, vilas antigas, margens de rio ao fim da tarde. 


No fim de contas, a Royal Enfield Classic 350 Madras Red é uma moto que alia alma e racionalidade. Durante a nossa utilização, surpreendeu-nos com consumos de apenas 2,5 litros de liquido inflamável por cada cem quilómetros de viagem no tempo, um valor que quase parece desmentir a sua aparência robusta. 


E tudo isto por um preço que a torna ainda mais tentadora: 4.887 euros é quanto a marca pede para levar para casa – e sobretudo para a estrada – uma peça de história viva. A Royal Enfield Classic 350 assumiu-se como um bilhete só de ida para a tradição, para a calma e para um estilo de vida que sabe saborear o tempo, quilómetro a quilómetro.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

O Outono e o Motociclismo

O outono aproxima-se. Não entra de rompante, não rasga os calendários de uma só vez — insinua-se primeiro nas manhãs frescas, no orvalho que humedece o banco da moto, nos tons dourados que começam a incendiar as copas das árvores. É uma estação de passagem, de transição, mas talvez por isso mesmo seja também uma estação de verdade: onde o verão se despede com um último sorriso quente, e o inverno espreita, paciente, com a sua mão fria pronta a pousar-nos no ombro. 


Para o motociclista, o outono não é apenas um cenário. É um estado da estrada, é uma promessa e uma ameaça, é a vida a dizer-nos que tudo é cíclico e que até os dias mais luminosos acabam por ceder à penumbra. Mas, nesse caminho, há beleza, há arrebatamento, há paixão. 

AS CORES QUE DESCEM À ESTRADA 
No outono, Lisboa veste-se de ferrugem e ouro, e as estradas nacionais que partem da capital — rumo a Sintra, à Arrábida, ao Oeste — tornam-se corredores pintados à mão por um artista caprichoso. O verde de verão começa a perder força, substituído por vermelhos, amarelos e castanhos que caem em folhas e se espalham pelo alcatrão. O motociclista sente a roda deslizar sobre este tapete, e cada curva ganha uma delicadeza nova: não é a tração absoluta da borracha quente sobre o asfalto seco, mas sim o equilíbrio entre firmeza e respeito pela incerteza. 

Há algo de sensual nesta dança com a estrada: como se o outono oferecesse seios fartos de cor e de sombra, convidando-nos a tocá-los com o olhar e com a alma. É uma estação voluptuosa, que se despe lentamente, folha a folha, como quem revela segredos antigos. 

O ASFALTO HÚMIDO, AS PRIMEIRAS CHUVAS 
As primeiras chuvas chegam como cartas de aviso. Não são ainda o dilúvio do inverno, mas lembram-nos que a estrada é viva e traiçoeira. O asfalto húmido tem cheiro próprio — uma mistura de pó molhado, folhas esmagadas e gasolina esquecida. O pneu dança mais do que deveria, e a mão direita aprende a ser mais suave, mais paciente. 


É no outono que o motociclista reaprende a ser humilde. Depois de meses de verão em que a estrada parecia nossa cúmplice absoluta, surge agora a dúvida: “E se escorregar?” A dúvida é saudável, é pedagógica, é parte da essência de conduzir em duas rodas. E, no entanto, entre curvas molhadas e retas frias, há sempre um pôr-do-sol que compensa tudo: aquela luz rasante, dourada, que pinta o asfalto e o mar, lembrando-nos que é neste instante — e não noutro — que vale a pena viver.

DIAS QUE ENCOLHEM, ESTRADAS QUE CHAMAM 
Os dias tornam-se mais curtos. O relógio parece conspirar contra nós, roubando-nos minutos de luz. Mas há uma poesia nesse encurtar do dia: no verão, o pôr-do-sol acontece tarde demais, apanhando-nos já sentados à mesa, distraídos da estrada. No outono, ele chega no momento perfeito: a meio de uma curva na serra de Sintra, no cimo da Serra de Montejunto, ou diante de um Atlântico encrespado junto ao Guincho. 

É a recompensa de um passeio de fim de tarde: desligar a moto, retirar o capacete, deixar que o vento fresco nos acaricie a face e ver o sol mergulhar cedo, muito cedo, nas águas de setembro ou outubro. Esse instante é só nosso. 

AS COLHEITAS DA ESTRADA 
Outono é tempo de vindimas, de uvas esmagadas nos lagares, de campos que se despedem dos seus frutos. Para o motociclista, também há colheita: colhem-se memórias do verão, armazenam-se quilómetros para o inverno que se aproxima. Cada saída de outono é uma forma de abastecer o espírito, de armazenar calor humano e paisagens na memória, como quem junta lenha para a lareira. 


E tal como nas vinhas, também na estrada há um vinho novo: o frescor do ar, o vigor das curvas ainda não geladas, o prazer simples de enrolar o punho sem pressas, saboreando cada metro. 

A CIDADE NO OUTONO 
Lisboa em outono tem o trânsito mais denso. As férias acabaram, as escolas reabriram, e as artérias urbanas estão outra vez saturadas. Para quem anda de moto, porém, há sempre um sorriso escondido: o corredor entre carros torna-se o palco da liberdade quotidiana. Enquanto o pára-choques do automóvel se arrasta, o motociclista desliza entre filas, escapando ao tédio da lentidão. 

Mas há desafios também: o óleo que se mistura com as primeiras chuvas, as tampas de saneamento que brilham como armadilhas, os vidros embaciados dos carros que escondem gestos bruscos de condutores distraídos. O outono urbano exige vigilância redobrada, mas oferece também uma sensação de superioridade silenciosa: ser capaz de vencer o caos com leveza.

O OUTONO COMO METÁFORA 
Talvez o outono seja a estação mais motociclista de todas. Porque é uma estação de extremos em equilíbrio: nem o calor excessivo do verão, nem a rudeza fria do inverno. É uma época de meio-termo, mas não de neutralidade: é uma dança de contrastes, de beleza e perigo, de prazer e cautela. 

Tal como no motociclismo, o outono ensina-nos que cada curva pode ser a última daquela luz, que cada quilómetro importa, que a estrada é tão bela quanto imprevisível. O outono é a lembrança de que tudo passa, mas também de que tudo se renova.

PAIXÃO EM DUAS RODAS 
No fim, resta a paixão. Paixão pelo motociclismo, pela estrada nacional que se perde no horizonte, pelo mar que nos espera ao fundo, pelas montanhas que se tingem de cobre. Paixão pelo frio que começa a morder as mãos dentro das luvas, pelo capacete embaciado ao acordar cedo, pela coragem de enfrentar as primeiras chuvas. 


O motociclista de outono não é apenas um condutor: é um poeta em movimento, um colecionador de instantes dourados, um viajante que sabe que cada estação é uma oportunidade única de sentir a estrada de forma diferente. 

O OUTONO, AFINAL, NÃO É UM FIM. É UM CAMINHO. 
E enquanto houver uma estrada nacional por percorrer, enquanto houver uma curva que desça húmida entre folhas caídas, enquanto houver um pôr-do-sol a arder antes da hora de jantar — o outono será sempre a estação da paixão em duas rodas. 

(Na verdade, em Portugal e em todo o hemisfério norte, o outono teve o sue inico precisamente ontem, dia 22 de setembro pelas 18:19 (hora GMT))

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Voge 625DSX à prova

Há motos que chegam de mansinho, sem fanfarras nem luzes de néon, mas que, logo ao primeiro punho aberto, nos arrancam um sorriso cúmplice. A Voge 625 DSX é precisamente isso: uma trail de média cilindrada que não precisa de gritar para se afirmar. Basta deixar o motor respirar, sentir o equilíbrio do conjunto e perceber que estamos perante uma proposta que quer conquistar quilómetro a quilómetro. 


A 625DSX é uma trail/crossover de média cilindrada, pensada para viagens, commuting e passeios em estradões, com rodas 19”/17” e vocação “all-round”. É a evolução da 525DSX, agora com motor maior, eletrónica mais completa e equipamento mais “premium”. A Voge 625DSX surge colocada como opção de valor forte face às “midsize” (Benelli TRK702, CF 700MT) e um patamar abaixo das “hardcore” tipo Ténéré 700/Tuareg 660, com preço E também pode aproveitar a um utilizador experiente que procura uma “segunda moto” para aventuras e passeios sem o peso/preço das big-trails. 


Recordamos que a Voge é a divisão “premium” do gigante chinês Loncin. Enquanto ecossistema industrial a Loncin fabrica, há anos, motores e scooters para a BMW Motorrad (parceria industrial continuada), o que ajuda também a explicar níveis de acabamento/fornecedores (KYB, Nissin, Metzeler) que encontramos na 625DSX. 

O CORAÇÃO QUE PULSA A 270° 
Na ficha técnica, a Voge 625DSX impressiona. O motor é um bicilíndrico em linha de 581 cc, com cambota a 270°, pensado para replicar o carácter de um V-twin, mas com a suavidade e eficiência típicas de uma configuração moderna. Os números são claros: 63 cv às 9 000 rpm e 57 Nm às 6 500 rpm. Mas, mais do que os números, é a forma como entrega a potência que seduz. Há corpo a meio-regime, elasticidade suficiente para a cidade e alma para viajar sem complexos. 


O chassi é um quadro perimetral em aço com subquadro desmontável. Suspensão: KYB invertida de 41 mm, ajustável em pré-carga e extensão (174 mm curso); atrás mono com reservatório e totalmente regulável (181 mm curso). Travagem Nissin, duplo disco 298 mm à frente + 240 mm atrás; ABS de dois canais desligável. Rodas/Pneus: raiadas tubeless 19”/17” equipadas com Metzeler Tourance 110/80R19 e 150/70R17.

UMA TRAIL DO DIA-A-DIA 
No trânsito urbano, a DSX revela-se surpreendentemente dócil. A altura de assento (835 mm) é acessível para uma trail, e os cerca de 206 kg em ordem de marcha não a tornam pesada nem intimidante. O guiador largo garante manobrabilidade, e a posição de condução ergonómica deixa-nos preparados para horas de utilização. Desde o momento zero, a mexer nela parada ou a serpentear no trânsito, a 625DSX é ágil, dócil, intuitiva. O commuting — casa-trabalho, trabalho-casa, voltas curtas pela cidade — revelou-a confortável, eficaz e prática, com o motor sempre disponível e uma ciclística de fino recorte: quadro afinado, suspensão certa, tudo a conspirar para uma condução natural e descomplicada.


Em auto-estrada, mantém velocidades de cruzeiro com naturalidade, protegendo o condutor com uma frente robusta e um conjunto que transmite estabilidade. Nos troços de curvas, a agilidade vem ao de cima: a ciclística é intuitiva, o conjunto entra em curva sem esforço e mantém a linha com segurança. 

TECNOLOGIA DE MOTO GRANDE 
É também aqui que a 625 DSX surpreende mais: ecrã TFT a cores com navegação, conectividade Bluetooth, câmara frontal HD, ABS e controlo de tração desligáveis, monitorização da pressão dos pneus, iluminação full LED, entrada USB, descanso central, proteções laterais e de cárter. Tudo isto de série. A lista impressiona, sobretudo quando nos lembramos do preço de ataque. 


A escolha de componentes não engana: travões Nissin, suspensão KYB, pneus Metzeler. Sente-se solidez na montagem, atenção ao detalhe, e um esforço real para oferecer ao condutor não apenas uma moto acessível, mas uma moto com dignidade, capaz de ombrear com propostas de marcas mais tradicionais. 

IMPONENTE E ROBUSTA 
A VOGE 625DSX não precisa de truques: a primeira impressão é das que ficam coladas à retina — visualmente impactante. Imponente sem arrogância, robusta sem excesso, aquela presença que nos faz abrandar meio segundo antes de rodar a chave. Mas uma trail mede-se também fora do casulo urbano. Em estrada de montanha, onde as curvas pedem corpo e cadência, a VOGE 625DSX confirmou a boa estrela: mantém ritmo em estrada rápida e entra em curva com vontade, sem sobressaltos. A dois, com a Miss Yoshimura na traseira, a resposta do motor manteve-se cheia e limpa. A Miss Yoshimura gostou de viajar ali porque a moto consegue ser confortável, eficaz e divertida. 

E porque uma trail pede pó nos cotovelos, houve fora de estrada. O ADN trail confirma-se fora do asfalto. As rodas de 19” à frente e 17” atrás, com jantes de raios sem câmara, e os pneus Metzeler Tourance, combinam-se com a suspensão KYB regulável para dar confiança em estradões e pisos menos previsíveis. Não é uma enduro radical, mas sabe sujar as botas com competência. 

Notem que esta não é experiência imune a reparos, e ainda bem: dá-nos margem para exigir mais. A proteção aerodinâmica podia ser mais generosa (já é aceitável, mas há espaço para ganhar fluidez). O banco do condutor merecia um toque extra de conforto — resolução fácil em futuras versões. E, numa nota mais subjetiva, sentimos a ausência de controlo de cruzeiro (cruise control): a moto faz cruzeiros elevados com facilidade e deixa a sensação de que alberga bem mais potência e mais estofo. 


Ficou um lamento: sem malas, não pudemos cumprir a viagem longa que a moto parece pedir. É pena, porque tudo indica que a VOGE 625DSX está talhada para quilómetros sérios, para aquele mapa que se vai desenhando à medida que o depósito baixa. No balanço, a fotografia é nítida: a VOGE 625DSX surpreende. Seduz pela honestidade simples, pela forma como encaixa no quotidiano e, ao mesmo tempo, nos pisca o olho à estrada aberta. Não é apenas uma compra sensata; é companhia com alma de viagem. 


E, por falar em surpresas, vamos à cereja no topo do bolo desta Desert Sand. A VOGE 625DSX sorveu 4 litros de sumo de dinossauro por cada cem quilómetros de sorrisos, solicitando a marca uma transferência bancária de 6.592€ e a estrada dos teus sonhos espera por ti. Nota que se desejares carregar ainda mais a tua aventura, o conjunto de malas by Loboo, está disponivel por 998€ e garante que cada viagem é feita com estilo e audácia. 


Que os puristas, os conservadores, os elitistas e os preconceituosos mais rígidos fechem os olhos e suspirem: esta moto não veio para obedecer, veio para desafiar, para arrancar sorrisos e leva uma nota elevadíssima nesta prova. 

Raterómetro ********* (9/10)

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Saltos para o perigo

Há um movimento que vejo, todos os dias, nas entradas das vias rápidas de Lisboa: o condutor que chega à denominada faixa de aceleração e, sem integrar-se no fluxo, “salta” cedo demais e sem velocidade adequada para a faixa 1. Se não há “rampa”, faz o mesmo da faixa 1 para a faixa 2. É um gesto curto, instintivo — um abrir de portas numa sinfonia de latas —, mas as consequências são longas e às vezes trágicas. Para quem vai de moto, esse salto pode ser sobretudo uma sentença: espaço reduzido, diferenças de velocidade, ângulos mortos — e, nalguns casos, impacto frontal ou lateral numa travagem em cadeia. 


A evidência não é só minha: o IC19 foi identificado como a via com mais pontos negros em Portugal (relatórios ANSR/2018), com vários troços onde os acidentes são persistentes; isso não é coincidência, é sinal de problemas estruturais e comportamentais que convergem. 

O PROBLEMA — EXPLICADO SEM RODEIOS 
Quando um veículo abandona prematuramente a faixa de aceleração e entra na faixa 1 sem ter alcançado uma velocidade adequada ou sem ter espaço suficiente para se inserir, cria-se: 
1. Diferença de velocidade entre o veículo que entra e o fluxo principal — risco direto de colisão.
2. Travagem súbita em quem vem atrás quando tenta evitar o corte — efeito “concertina” que se propaga rio acima. 
3. Manobras evasivas em sucessão (faixa 1 para 2, 2 para 3…) — multiplicam-se zonas de conflito e ângulos mortos onde as motos ficam invisíveis. 

Os números mostram um quadro preocupante: o relatório anual da ANSR 2023 regista dezenas de milhares de acidentes com vítimas em Portugal e um aumento generalizado de sinistralidade em vários segmentos. 

POR QUE RAIO É QUE ISTO ACONTECE? UMA LEITURA MULTIDISCIPLINAR
Psicologia: pressa, stress e overconfidence 
A pressa quotidiana — hora do trabalho, prazos, ansiedade — empurra condutores a atalhos arriscados. A literatura sobre comportamentos de risco no tráfego associa pressão temporal e impaciência a violações e mudanças de faixa precipitadas; muitos condutores também exibem excesso de confiança (acham que “cabem” onde não cabem). Estas não são desculpas, são explicações que ajudam a desenhar soluções. 

Engenharia: rampas curtas, visibilidade limitada, geometria conflituosa 
Muitas entradas urbanas (VCI a norte, 2.ª Circular, IC19, acessos à Ponte 25 de Abril) têm rampas curtas, ângulos de visibilidade reduzida ou troços onde se exige cruzar várias faixas em pouco espaço. Estudos técnicos repetem o mesmo: faixas de aceleração curtas aumentam a probabilidade de conflitos e de acidentes, porque não dão tempo suficiente para acelerar e procurar “gap” seguro. A solução passa por redesenho e dimensionamento racional das rampas. 


Cultura e prática social: “ninguém facilita” e a corrida por posição 
Há uma lógica social nas estradas: se eu não me adianto, o outro fecha-me a porta. Isso gera competição por espaço — um feed-back negativo que incentiva cortes e “fechos”. A perceção de impunidade (fiscalização ténue, pouco civismo) reforça o comportamento. 

Dinâmica de tráfego: o efeito concertina / shockwave 
Uma entrada mal coordenada cria uma ondulação de travagens — a famosa onda que viaja para trás no trânsito (“traffic shockwave” ou efeito concertina). Esses “pulsos” de travagem aumentam o risco de colisões traseiras e amplificam o caos em frações de segundo. Para quem vai de mota, essa ondulação é traiçoeira: menos tempo de reação, menos margem para evitar um veículo que corta a faixa. 

PROVAS LOCAIS (LISBOA) — EXEMPLOS QUE CONHEÇO BEM 
• IC19: repetidamente apontado como troço crítico, com vários “pontos negros” identificados em relatórios e análises nacionais; alguns troços concentram acidentes graves por baixa visibilidade e entradas conflituosas. 
• 2.ª Circular: acidentes multiplicam-se em rampas e zonas de confluência; notícias recentes mostram colisões com vários veículos e impacto direto na fluidez da cidade.
• Ponte 25 de Abril / acessos: os nós de entrada/saída são locais críticos — a presença de câmaras e tráfego intenso confirma o risco operativo nesses pontos. 

O QUE PODE (E DEVE) SER FEITO — RECOMENDAÇÕES PRÁTICAS 
Para condutores (carros)
1. Usar a faixa de aceleração como foi pensada: acelerar para o fluxo, observar, sinalizar com antecedência e só integrar quando existir “gap” adequado. 
2. Evitar fechamentos agressivos: facilitar quem entra quando possível; a cooperação reduz tempos e acidentes. 
3. Planear a manobra: se a rampa é curta, reduzir a necessidade de corte antecipado — ganhar tempo e espaço antes da confluência. 
4. Mentalidade defensiva: assumir que há motos nos ângulos mortos e reduzir velocidade se houver qualquer dúvida. 

Para motociclistas 
1. Posicionamento visível: circular mais à direita da faixa (quando seguro) para aumentar a visibilidade lateral e reduzir o risco de ser “fechado”. 
2. Evitar “filtrar” arriscado em troços de confluência — escolher momento de passagem com margem lateral e velocidade compatível. 
3. Sinalizar cedo e usar equipamento de alta visibilidade, especialmente em túneis e rampas com má luz. 4. Antecipar turbulência: ao aproximar-se de entradas com muito tráfego, diminuir a velocidade de forma controlada para ganhar margem de manobra. 
5. Formação contínua: cursos de condução defensiva específicos para motociclistas, com ênfase em inserções e interações com tráfego pesado. 

Para autoridades e planeadores 
1. Revisão do desenho das rampas: alongar e redesenhar faixas de aceleração onde possível; melhorar visibilidade e ângulos de inserção. Estudos mostram que aumentar o comprimento da aceleração reduz conflitos. 
2. Fiscalização focalizada em nós críticos (IC19, 2.ª Circular, acessos à Ponte 25 de Abril, VCI). 
3. Campanhas de sensibilização que enquadrem a condução como acto colectivo — “facilitar salva vidas”. 
4. Intervenções de tráfego (sinalética, iluminação, marcações e dispositivos de redução de velocidade nas zonas de confluência). 
5. Monitorização por vídeo e mapas de risco: identificar troços com frequência de travagens súbitas e corrigi-los sistematicamente. 

Checklist rápido (para colocar no “dash” da tua moto) 
• Posiciono-me para ser visto? 
• Tenho espaço lateral suficiente?
• Sinalizo cedo?
• Evito mudanças bruscas de faixa em confluência? 
• Reduzo velocidade antes de zonas de entradas? 

Se a resposta a alguma destas perguntas for “não”, ajusta — a diferença pode ser entre chegar a casa e não chegar. 


Não é só incompetência ou azar. É um nó de causas: pressa, infraestruturas mal pensadas, cultura de estrada e dinâmica física do tráfego. Quando um condutor “salta” cedo da “rampa”, pode não imaginar que está a puxar a mola de uma reacção em cadeia que acerta sobretudo em quem tem menos blindagem — os motociclistas. Conhecer o fenómeno, olhar para os mapas, exigir melhores estradas e treinar condutores é o mínimo que se deve esperar de uma cidade que se diz moderna. 

Fontes (seleção) 
• ANSR — Relatórios e identificação de pontos negros (IC19).
• Relatório Anual ANSR 2023 — sinistralidade e evolução de vítimas. 
• Notícias e análises sobre o aumento de vítimas em motociclos (2023). 
• Estudos técnicos sobre comprimento de faixas de aceleração e segurança de fusão. 
• Conceito e efeitos das ondas de tráfego / efeito concertina (FHWA, teoria do fluxo). 
• Artigos e notícias sobre colisões na 2.ª Circular e pontos críticos locais.
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