Há dias em que o calendário mente. O outono está no calendário, mas o calor no asfalto insiste em prolongar a ilusão do verão. O céu é limpo, azul de postal, e a temperatura parece suspender-se, recusando o declínio da estação. Nessas jornadas, o motociclista compreende melhor do que ninguém o conceito de Endless Summer — esse verão eterno que não é apenas uma estação, e sim uma atitude, uma estética, um estado de espírito.
O termo nasceu longe das estradas portuguesas. Foi forjado nas praias da Califórnia, nos anos sessenta, embalado pelas ondas do Pacífico e pelo imaginário juvenil que via na liberdade e no movimento o antídoto contra a rotina. Mas cedo deixou de pertencer apenas ao surf. Transformou-se em mito cultural global, espalhando-se pela música, pelo cinema e, inevitavelmente, pelo motociclismo.
A RAIZ: SURF, CINEMA E CALIFÓRNIA
Em 1966, Bruce Brown lançou The Endless Summer, documentário que seguiu dois surfistas em busca da onda perfeita, viajando entre hemisférios para escapar ao inverno. O filme não era apenas sobre surf: era sobre juventude, liberdade, evasão, e a ideia de que a vida podia ser uma viagem infinita, desde que houvesse sol, mar e estrada para perseguir.
A banda sonora deste imaginário estava a ser escrita em paralelo por um grupo de rapazes de camisas às riscas e vozes harmonizadas: The Beach Boys. A sua música destilava sol, gasolina e mar — canções que falavam de motores, pranchas e amores de verão. Era o som de uma América que queria viver sem fim, embalando a ilusão de uma juventude eterna.
A Califórnia, com as suas estradas costeiras — a Highway 1 a serpentear entre falésias e praias — tornava-se palco e metáfora: a viagem era infinita, o horizonte nunca se fechava, e o verão era uma promessa que não conhecia calendário.
O CONTÁGIO: MOTOCICLISMO E CULTURA DE ESTRADA
Seria impossível que o motociclismo ficasse imune a esta onda cultural. Afinal, a moto partilhava a mesma gramática do surf: velocidade, equilíbrio, risco, o corpo exposto aos elementos. Onde o surfista lia a onda, o motociclista lia o asfalto e o pó. Onde o surfista atravessava mares, o motociclista atravessava fronteiras.
No final dos anos sessenta, o cinema selou esta ponte com Easy Rider (1969). Duas Harley-Davidson a cortar a América profunda, com sol no horizonte e estrada sem fim, condensaram no ecrã o mito do verão eterno aplicado ao motociclismo. A viagem não era apenas deslocação: era manifesto, libertação, experiência total.
A estética do Endless Summer infiltrou-se nas publicidades de motos japonesas que, nos anos setenta, prometiam liberdade acessível a todos. Revistas exibiam jovens de t-shirt e óculos escuros a rolar por estradas costeiras, como se cada curva fosse uma extensão de Malibu. A Honda, a Yamaha, a Kawasaki, todas beberam desta linguagem: o verão era a estação natural da moto.
O ECO EUROPEU
A Europa, sempre fascinada pelo mito americano, reinterpretou-o à sua maneira. Em Itália, a Vespa e a Lambretta, símbolos da dolce vita, tornaram-se veículos de juventude solar, de praias em Rimini e noites em Roma. Em França, a Nouvelle Vague filmou estradas de verão e rapazes de cabelo ao vento. Em Espanha e Portugal, ainda a sair de ditaduras, a ideia de liberdade associada à estrada soava quase subversiva.
As estradas europeias, menos retas que as americanas, mais antigas e sinuosas, acrescentaram outra dimensão ao mito: a de que o verão eterno podia ser vivido não só em grandes highways, mas em Nacionais com cheiro a pinhal, ladeadas de aldeias e igrejas brancas. A viagem tornava-se também encontro com a memória, com a história, com a paisagem ancestral.
POÉTICA DO VERÃO ETERNO
Rolar de moto num dia de outubro, com 28 graus, céu limpo e vento morno, é viver o paradoxo de um verão fora de estação. O som do motor converte-se em banda sonora, tão evocativa quanto os Beach Boys ou Jimi Hendrix. O asfalto aquece como se fosse areia. O vento no capacete é sal do mar.
A moto é uma prancha mecânica. Surfa-se a onda do tempo, prolonga-se o instante, recusa-se o declínio do sol. Cada curva é espuma, cada reta é horizonte. O motociclista é um surfista da estrada, e o seu verão eterno é feito de quilómetros em busca de algo que nunca se alcança, mas que, no fundo, não precisa de ser alcançado.
O PRESENTE: UM OUTONO AZUL
Portugal, neste início de outono, oferece dias que parecem contradição: calendário diz outono, mas a pele sente verão. É aqui que o mito renasce, atualizado. O motociclista veste o casaco leve, liga a máquina, e o escape rouco anuncia: o verão ainda não acabou. Talvez nunca acabe.
As redes sociais estão cheias de imagens de estradas douradas pelo sol de outubro, de viagens improvisadas que parecem férias. O espírito do Endless Summer continua vivo, mesmo que já não seja falado em voz alta. É ele que empurra o motociclista para a estrada, que o convence de que cada curva pode ser infinita, cada viagem pode durar para sempre.
O LEGADO
O Endless Summer deixou de ser apenas um filme, uma música ou uma moda. Tornou-se arquétipo cultural, ideia persistente que atravessa gerações. Para o surfista, para o motociclista, para qualquer viajante: o verão eterno é o símbolo de uma juventude que não envelhece, de uma liberdade que não se prende ao calendário. E enquanto houver motores a rugir sob céus azuis, enquanto houver quem queira fugir pela estrada em busca de um horizonte, o mito continuará vivo.
O motociclista português que hoje rola pela Serra de Montejunto ou pela Nacional 2 participa na mesma epopeia cultural que começou nas praias californianas há seis décadas. O seu verão não acaba. O asfalto, quente e vibrante, é a prova. O verão eterno não está no calendário. Está no motor que se acende, no horizonte que nunca se alcança, na estrada que insiste em não terminar.
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