terça-feira, 23 de setembro de 2025

O Outono e o Motociclismo

O outono aproxima-se. Não entra de rompante, não rasga os calendários de uma só vez — insinua-se primeiro nas manhãs frescas, no orvalho que humedece o banco da moto, nos tons dourados que começam a incendiar as copas das árvores. É uma estação de passagem, de transição, mas talvez por isso mesmo seja também uma estação de verdade: onde o verão se despede com um último sorriso quente, e o inverno espreita, paciente, com a sua mão fria pronta a pousar-nos no ombro. 


Para o motociclista, o outono não é apenas um cenário. É um estado da estrada, é uma promessa e uma ameaça, é a vida a dizer-nos que tudo é cíclico e que até os dias mais luminosos acabam por ceder à penumbra. Mas, nesse caminho, há beleza, há arrebatamento, há paixão. 

AS CORES QUE DESCEM À ESTRADA 
No outono, Lisboa veste-se de ferrugem e ouro, e as estradas nacionais que partem da capital — rumo a Sintra, à Arrábida, ao Oeste — tornam-se corredores pintados à mão por um artista caprichoso. O verde de verão começa a perder força, substituído por vermelhos, amarelos e castanhos que caem em folhas e se espalham pelo alcatrão. O motociclista sente a roda deslizar sobre este tapete, e cada curva ganha uma delicadeza nova: não é a tração absoluta da borracha quente sobre o asfalto seco, mas sim o equilíbrio entre firmeza e respeito pela incerteza. 

Há algo de sensual nesta dança com a estrada: como se o outono oferecesse seios fartos de cor e de sombra, convidando-nos a tocá-los com o olhar e com a alma. É uma estação voluptuosa, que se despe lentamente, folha a folha, como quem revela segredos antigos. 

O ASFALTO HÚMIDO, AS PRIMEIRAS CHUVAS 
As primeiras chuvas chegam como cartas de aviso. Não são ainda o dilúvio do inverno, mas lembram-nos que a estrada é viva e traiçoeira. O asfalto húmido tem cheiro próprio — uma mistura de pó molhado, folhas esmagadas e gasolina esquecida. O pneu dança mais do que deveria, e a mão direita aprende a ser mais suave, mais paciente. 


É no outono que o motociclista reaprende a ser humilde. Depois de meses de verão em que a estrada parecia nossa cúmplice absoluta, surge agora a dúvida: “E se escorregar?” A dúvida é saudável, é pedagógica, é parte da essência de conduzir em duas rodas. E, no entanto, entre curvas molhadas e retas frias, há sempre um pôr-do-sol que compensa tudo: aquela luz rasante, dourada, que pinta o asfalto e o mar, lembrando-nos que é neste instante — e não noutro — que vale a pena viver.

DIAS QUE ENCOLHEM, ESTRADAS QUE CHAMAM 
Os dias tornam-se mais curtos. O relógio parece conspirar contra nós, roubando-nos minutos de luz. Mas há uma poesia nesse encurtar do dia: no verão, o pôr-do-sol acontece tarde demais, apanhando-nos já sentados à mesa, distraídos da estrada. No outono, ele chega no momento perfeito: a meio de uma curva na serra de Sintra, no cimo da Serra de Montejunto, ou diante de um Atlântico encrespado junto ao Guincho. 

É a recompensa de um passeio de fim de tarde: desligar a moto, retirar o capacete, deixar que o vento fresco nos acaricie a face e ver o sol mergulhar cedo, muito cedo, nas águas de setembro ou outubro. Esse instante é só nosso. 

AS COLHEITAS DA ESTRADA 
Outono é tempo de vindimas, de uvas esmagadas nos lagares, de campos que se despedem dos seus frutos. Para o motociclista, também há colheita: colhem-se memórias do verão, armazenam-se quilómetros para o inverno que se aproxima. Cada saída de outono é uma forma de abastecer o espírito, de armazenar calor humano e paisagens na memória, como quem junta lenha para a lareira. 


E tal como nas vinhas, também na estrada há um vinho novo: o frescor do ar, o vigor das curvas ainda não geladas, o prazer simples de enrolar o punho sem pressas, saboreando cada metro. 

A CIDADE NO OUTONO 
Lisboa em outono tem o trânsito mais denso. As férias acabaram, as escolas reabriram, e as artérias urbanas estão outra vez saturadas. Para quem anda de moto, porém, há sempre um sorriso escondido: o corredor entre carros torna-se o palco da liberdade quotidiana. Enquanto o pára-choques do automóvel se arrasta, o motociclista desliza entre filas, escapando ao tédio da lentidão. 

Mas há desafios também: o óleo que se mistura com as primeiras chuvas, as tampas de saneamento que brilham como armadilhas, os vidros embaciados dos carros que escondem gestos bruscos de condutores distraídos. O outono urbano exige vigilância redobrada, mas oferece também uma sensação de superioridade silenciosa: ser capaz de vencer o caos com leveza.

O OUTONO COMO METÁFORA 
Talvez o outono seja a estação mais motociclista de todas. Porque é uma estação de extremos em equilíbrio: nem o calor excessivo do verão, nem a rudeza fria do inverno. É uma época de meio-termo, mas não de neutralidade: é uma dança de contrastes, de beleza e perigo, de prazer e cautela. 

Tal como no motociclismo, o outono ensina-nos que cada curva pode ser a última daquela luz, que cada quilómetro importa, que a estrada é tão bela quanto imprevisível. O outono é a lembrança de que tudo passa, mas também de que tudo se renova.

PAIXÃO EM DUAS RODAS 
No fim, resta a paixão. Paixão pelo motociclismo, pela estrada nacional que se perde no horizonte, pelo mar que nos espera ao fundo, pelas montanhas que se tingem de cobre. Paixão pelo frio que começa a morder as mãos dentro das luvas, pelo capacete embaciado ao acordar cedo, pela coragem de enfrentar as primeiras chuvas. 


O motociclista de outono não é apenas um condutor: é um poeta em movimento, um colecionador de instantes dourados, um viajante que sabe que cada estação é uma oportunidade única de sentir a estrada de forma diferente. 

O OUTONO, AFINAL, NÃO É UM FIM. É UM CAMINHO. 
E enquanto houver uma estrada nacional por percorrer, enquanto houver uma curva que desça húmida entre folhas caídas, enquanto houver um pôr-do-sol a arder antes da hora de jantar — o outono será sempre a estação da paixão em duas rodas. 

(Na verdade, em Portugal e em todo o hemisfério norte, o outono teve o sue inico precisamente ontem, dia 22 de setembro pelas 18:19 (hora GMT))

2 comentários:

  1. A meteorologia filtra-nos. Só os mais audazes chegam ao inverno profundo e continuam a sorrir debaixo do céu cinzento.

    Adorei esta viagem pelo outono. E só estamos no início!

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