quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Saltos para o perigo

Há um movimento que vejo, todos os dias, nas entradas das vias rápidas de Lisboa: o condutor que chega à denominada faixa de aceleração e, sem integrar-se no fluxo, “salta” cedo demais e sem velocidade adequada para a faixa 1. Se não há “rampa”, faz o mesmo da faixa 1 para a faixa 2. É um gesto curto, instintivo — um abrir de portas numa sinfonia de latas —, mas as consequências são longas e às vezes trágicas. Para quem vai de moto, esse salto pode ser sobretudo uma sentença: espaço reduzido, diferenças de velocidade, ângulos mortos — e, nalguns casos, impacto frontal ou lateral numa travagem em cadeia. 


A evidência não é só minha: o IC19 foi identificado como a via com mais pontos negros em Portugal (relatórios ANSR/2018), com vários troços onde os acidentes são persistentes; isso não é coincidência, é sinal de problemas estruturais e comportamentais que convergem. 

O PROBLEMA — EXPLICADO SEM RODEIOS 
Quando um veículo abandona prematuramente a faixa de aceleração e entra na faixa 1 sem ter alcançado uma velocidade adequada ou sem ter espaço suficiente para se inserir, cria-se: 
1. Diferença de velocidade entre o veículo que entra e o fluxo principal — risco direto de colisão.
2. Travagem súbita em quem vem atrás quando tenta evitar o corte — efeito “concertina” que se propaga rio acima. 
3. Manobras evasivas em sucessão (faixa 1 para 2, 2 para 3…) — multiplicam-se zonas de conflito e ângulos mortos onde as motos ficam invisíveis. 

Os números mostram um quadro preocupante: o relatório anual da ANSR 2023 regista dezenas de milhares de acidentes com vítimas em Portugal e um aumento generalizado de sinistralidade em vários segmentos. 

POR QUE RAIO É QUE ISTO ACONTECE? UMA LEITURA MULTIDISCIPLINAR
Psicologia: pressa, stress e overconfidence 
A pressa quotidiana — hora do trabalho, prazos, ansiedade — empurra condutores a atalhos arriscados. A literatura sobre comportamentos de risco no tráfego associa pressão temporal e impaciência a violações e mudanças de faixa precipitadas; muitos condutores também exibem excesso de confiança (acham que “cabem” onde não cabem). Estas não são desculpas, são explicações que ajudam a desenhar soluções. 

Engenharia: rampas curtas, visibilidade limitada, geometria conflituosa 
Muitas entradas urbanas (VCI a norte, 2.ª Circular, IC19, acessos à Ponte 25 de Abril) têm rampas curtas, ângulos de visibilidade reduzida ou troços onde se exige cruzar várias faixas em pouco espaço. Estudos técnicos repetem o mesmo: faixas de aceleração curtas aumentam a probabilidade de conflitos e de acidentes, porque não dão tempo suficiente para acelerar e procurar “gap” seguro. A solução passa por redesenho e dimensionamento racional das rampas. 


Cultura e prática social: “ninguém facilita” e a corrida por posição 
Há uma lógica social nas estradas: se eu não me adianto, o outro fecha-me a porta. Isso gera competição por espaço — um feed-back negativo que incentiva cortes e “fechos”. A perceção de impunidade (fiscalização ténue, pouco civismo) reforça o comportamento. 

Dinâmica de tráfego: o efeito concertina / shockwave 
Uma entrada mal coordenada cria uma ondulação de travagens — a famosa onda que viaja para trás no trânsito (“traffic shockwave” ou efeito concertina). Esses “pulsos” de travagem aumentam o risco de colisões traseiras e amplificam o caos em frações de segundo. Para quem vai de mota, essa ondulação é traiçoeira: menos tempo de reação, menos margem para evitar um veículo que corta a faixa. 

PROVAS LOCAIS (LISBOA) — EXEMPLOS QUE CONHEÇO BEM 
• IC19: repetidamente apontado como troço crítico, com vários “pontos negros” identificados em relatórios e análises nacionais; alguns troços concentram acidentes graves por baixa visibilidade e entradas conflituosas. 
• 2.ª Circular: acidentes multiplicam-se em rampas e zonas de confluência; notícias recentes mostram colisões com vários veículos e impacto direto na fluidez da cidade.
• Ponte 25 de Abril / acessos: os nós de entrada/saída são locais críticos — a presença de câmaras e tráfego intenso confirma o risco operativo nesses pontos. 

O QUE PODE (E DEVE) SER FEITO — RECOMENDAÇÕES PRÁTICAS 
Para condutores (carros)
1. Usar a faixa de aceleração como foi pensada: acelerar para o fluxo, observar, sinalizar com antecedência e só integrar quando existir “gap” adequado. 
2. Evitar fechamentos agressivos: facilitar quem entra quando possível; a cooperação reduz tempos e acidentes. 
3. Planear a manobra: se a rampa é curta, reduzir a necessidade de corte antecipado — ganhar tempo e espaço antes da confluência. 
4. Mentalidade defensiva: assumir que há motos nos ângulos mortos e reduzir velocidade se houver qualquer dúvida. 

Para motociclistas 
1. Posicionamento visível: circular mais à direita da faixa (quando seguro) para aumentar a visibilidade lateral e reduzir o risco de ser “fechado”. 
2. Evitar “filtrar” arriscado em troços de confluência — escolher momento de passagem com margem lateral e velocidade compatível. 
3. Sinalizar cedo e usar equipamento de alta visibilidade, especialmente em túneis e rampas com má luz. 4. Antecipar turbulência: ao aproximar-se de entradas com muito tráfego, diminuir a velocidade de forma controlada para ganhar margem de manobra. 
5. Formação contínua: cursos de condução defensiva específicos para motociclistas, com ênfase em inserções e interações com tráfego pesado. 

Para autoridades e planeadores 
1. Revisão do desenho das rampas: alongar e redesenhar faixas de aceleração onde possível; melhorar visibilidade e ângulos de inserção. Estudos mostram que aumentar o comprimento da aceleração reduz conflitos. 
2. Fiscalização focalizada em nós críticos (IC19, 2.ª Circular, acessos à Ponte 25 de Abril, VCI). 
3. Campanhas de sensibilização que enquadrem a condução como acto colectivo — “facilitar salva vidas”. 
4. Intervenções de tráfego (sinalética, iluminação, marcações e dispositivos de redução de velocidade nas zonas de confluência). 
5. Monitorização por vídeo e mapas de risco: identificar troços com frequência de travagens súbitas e corrigi-los sistematicamente. 

Checklist rápido (para colocar no “dash” da tua moto) 
• Posiciono-me para ser visto? 
• Tenho espaço lateral suficiente?
• Sinalizo cedo?
• Evito mudanças bruscas de faixa em confluência? 
• Reduzo velocidade antes de zonas de entradas? 

Se a resposta a alguma destas perguntas for “não”, ajusta — a diferença pode ser entre chegar a casa e não chegar. 


Não é só incompetência ou azar. É um nó de causas: pressa, infraestruturas mal pensadas, cultura de estrada e dinâmica física do tráfego. Quando um condutor “salta” cedo da “rampa”, pode não imaginar que está a puxar a mola de uma reacção em cadeia que acerta sobretudo em quem tem menos blindagem — os motociclistas. Conhecer o fenómeno, olhar para os mapas, exigir melhores estradas e treinar condutores é o mínimo que se deve esperar de uma cidade que se diz moderna. 

Fontes (seleção) 
• ANSR — Relatórios e identificação de pontos negros (IC19).
• Relatório Anual ANSR 2023 — sinistralidade e evolução de vítimas. 
• Notícias e análises sobre o aumento de vítimas em motociclos (2023). 
• Estudos técnicos sobre comprimento de faixas de aceleração e segurança de fusão. 
• Conceito e efeitos das ondas de tráfego / efeito concertina (FHWA, teoria do fluxo). 
• Artigos e notícias sobre colisões na 2.ª Circular e pontos críticos locais.

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