segunda-feira, 28 de março de 2022

Experiência Honda NT1100 Tour Ibérico – primeira parte

O que é um cético? É uma pessoa que não acredita, que duvida ou se apresenta como incrédulo e descrente; um indivíduo que questiona uma ideia ou teoria com base na sua popularidade ou na autoridade que anuncia ou impõe essa ideia. Numa palavra, o cético é aquele sujeito que costuma questionar as verdades absolutas ou popularmente aceites. Relativizar é um bom hábito, diria… 


A nova Honda NT1100 tem, de forma natural, sido um dos destaques dos últimos tempos. Uma moto que assumiu rapidamente uma posição dominante nas conversas entre motociclistas, desde logo porque a marca japonesa a anunciou como “uma nova referência para o segmento Touring”, aquela que é uma fatia de mercado bastante relevante (ao arrepio do que alguns dizem…). 

Num primeiro texto aqui no ESCAPE (link), este vosso cético escriba colocava alguns pontos de interrogação na novidade nipónica, ao mesmo tempo que afirmava que “a nova era do Touring não o é por si própria (…) ou então, provem-me apenas que estou errado. E deixem-me entender que esta moto com as cores dignas da tal perfeita monotonia eficaz, inaugura de facto um novo tempo para o turismo de moto”. 

Passados quatro meses tive enfim oportunidade de provar a NT1100 na sua versão DCT (link). Dessa prova “resultaram duas consequências: primeira, hoje, o conceito de mototurismo alterou o seu centro geodésico deixando cair alguns aspectos como o carácter de superação e a própria genuinidade. Segunda consequência: pelo sim pelo não encomendei uma NT 1100 DCT à Honda Portugal cá para casa…, não vá eu estar profundamente enganado e a marca ter mesmo razão quando afirma “só tem de pensar numa coisa. Para onde, e até onde, quer ir?”.”. 


Tudo certo. Nada errado. No ceticismo científico existe a necessidade de certificação de crenças a partir da submissão destas a diferentes métodos científicos que possam confirmá-las ou não. Agora em português cognoscível: digo e repito, a ideia que tinha naquele momento é que na Honda NT1100 “não há deslumbre, todavia há uma sensação de competência, dever cumprido, e acima de tudo de uma facilidade de utilização que chega a ser desconcertante”. 

Foi neste estranho enquadramento de moto que anuncia uma nova era das quais (moto e era) eu duvido…, de moto por mim encomendada…, de moto sucesso imediato…, de moto nova que nunca mais chega…, que surgiu o simpático convite por parte da marca para integrar, com outros elementos da comunicação especializada, um Tour que se assume como "iniciativa ímpar a nível ibérico que permita evidenciar todos os atributos da NT1100 (…) aproveitando ao máximo estradas e paisagens merecedoras de todos os encómios e distinções, como as escolhidas para este evento que nos levou do Porto a Madrid”. Meus caros: sejam pois muito bem-vindos à Honda NT1100 Iberia Tour Experience.

[O que vão ler a partir daqui é um texto por nós adaptado que parte de um comunicado de imprensa, boletim de imprensa ou press release, como lhe quiserem chamar. Isto é, uma comunicação feita por um indivíduo ou organização visando divulgar uma notícia ou um acontecimento] 

A REAL COMPANHIA DO DOURO 
No primeiro dia desta experiência fomos do coração do Porto até à belíssima aldeia de La Alberca, em viagem de 346 quilómetros plenos de motivos de interesse, bordeando o rio Douro. O mesmo que, em tempos idos, servia de autoestrada para o transporte do vinho desde o Alto Douro Vinhateiro até às caves do Vinho do Porto. Relicários de uma história de paladar realmente único que, provado na véspera, nos acompanhará ao longo do primeiro dia de viagem. 

Saídos do hotel Eurostars Porto Douro com tempo seco, um último olhar sobre a vista privilegiada para o Douro e para as caves de Vinho do Porto, aproveitando para uma última imagem tendo por pano de fundo um dos mais importantes símbolos do Porto, a Ponte Luiz I. Deixamos a cidade para trás, ganhamos tempo rumo a algumas das mais divertidas estradas nacionais através da autoestrada, rapidamente chegados a Amarante através da A4, via que demorou décadas a cumprir o prometido ponto final ao isolamento do interior. 


Saímos da A4 rumo ao verdadeiro início deste majestoso périplo, com cerca de 75 km rodados, descendo a deslumbrante Estrada Nacional 101 em direção a Mesão Frio, um dos pontos fulcrais na produção dos melhores e mais encorpados vinhos tintos e do Porto. A estrada que vai rasgando a encosta nascente da Serra da Aboboreira, sempre de olhos postos na Serra do Marão, leva-nos para o coração do Alto Douro Vinhateiro, através de troços bem conhecidos do ciclismo, com os famosos altos de Teixeira ou do Carneiro, como dos ralis e a não menos famosa “Especial” de Carvalho de Rei ou da Aboboreira, em tempos pontos decisivos do Rali de Portugal. 

Chegados a Peso da Régua (com tempo surpreendemente quente) já a 110 km do Porto, tempo para perceber que tudo aqui vive em redor da vinha e do vinho. Do vinho e do cada vez mais turístico Douro. Passemos pela marginal para apreciar um interminável rodopio de gentes dos quatro cantos do Mundo, transformando a outrora pacata localidade transmontana numa autêntica Babel. As origens perdem-se no tempo, é certo, mas o seu grande desenvolvimento está bem marcado na história, com crescimento acentuado após 1756, data da criação da Real Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. 

Obra do Marquês de Pombal que viria a instituir a primeira região demarcada de produção vitivinícola do Mundo, estendendo-se ao longo de mais 250 mil hectares que se prolongam até Freixo de Espada à Cinta e Barca d’Alva. 

Atravessemos o Douro beijando a Nacional 2 e, pela sua margem esquerda, vamos subir rumo ao Pinhão, onde já não navegam os tradicionais barcos rabelos que transportavam o vinho até às caves de Vila Nova de Gaia, substituídas pelos camiões-cisterna que podemos apanhar pelo caminho, criando procissões de grande lentidão. Nada como uma boa dose de paciência, aproveitando para apreciar o laborioso trabalho de homens e mulheres ao longo de centenas de anos, criando uma paisagem única onde os socalcos são degraus de uma escalada única rumo aos melhores vinhos. 


E, serpenteando de forma insinuante por uma das mais belas regiões do País, uma estrada que permitirá ver não uma, mas duas áreas que mereceram classificação como Património Imaterial pela Unesco: a região Vinhateira do Alto Douro e o Parque Arqueológico do Vale do Côa. 

PELA ESTRADA NACIONAL 222 
Entorno paisagístico que ajudou a Estrada Nacional 222 (N222) a conquistar, em 2015, o estatuto de World Best Driving Road à frente de estradas famosas como a Big Sur (na Califórnia, EUA), a Bad Urach (Hohenzollern, Alemanha) ou a A535 (centro de Inglaterra). Um estudo promovido pela Avis Rent-a-Car e que assenta numa fórmula matemática que determinou a N222 como a melhor estrada para conduzir, tendo em conta o comprimento das retas e os raios das curvas. Ou seja, uma junção do prazer de conduzir, com retas que permitem ao condutor deixar apreciar a bonita paisagem duriense em seu redor. Sobretudo neste troço, entre o Peso da Régua e o Pinhão, considerado perfeito para conduzir ao longo dos seus 27 quilómetros com um total de 93 curvas. 


Uma fórmula complexa, criada pelo engenheiro Herman Tilke, famoso pelas pistas de Fórmula 1 desenhadas nas duas últimas décadas; pelo criador de trajetos radicais e algumas das montanhas-russas mais excitantes do mundo, John Wardley; e pelo físico quântico, Mark Hadley, responsável do departamento de Física da Universidade de Warwick, uma das principais universidades do Reino Unido. E que diz, a fórmula, que a estrada ideal tem uma relação 10:1. Ou seja, dez segundos de reta para cada segundo utilizado a curvar. Ora a N222 tem um rácio de 11:1, ficando assim muito próximo da perfeição, enquanto a californiana Big Sur regista 8,5:1. 

Uma estrada que, segundo Wardley, que ajudou nos efeitos especiais de cinco dos filmes de James Bond, “transmite ao condutor uma confusão de sentimentos, que vai da emoção à intimidação, culminando depois na diversão e prazer”. Sensações e emoções que assentam na multiplicidade de variações na experiência que se pode sentir ao conduzir na N222, com “velocidades diferentes, uma mistura de curvas e retas e mudanças nos pontos de vista que são, afinal, comuns à condução e à experiência de uma montanha-russa”. 


Estrada que ora se aproxima ora se afasta do Douro, contornando os vales de alguns dos afluentes do rio por onde descia o precioso néctar até às caves do famoso Vinho do Porto. E cuja configuração teve nota de excelência na análise científica que combina a geometria da estrada, o tipo de condução, a aceleração média e aceleração lateral, o tempo de travagem e as distâncias. O resultado é materializado num Índice de Condução, cuja nota depende do equilíbrio entre as quatro fases, permitindo desfrutar de velocidade e aceleração, o teste à capacidade de condução ao longo das rectas e o usufruto da paisagem envolvente. Índice que permitiu perceber o equilíbrio ideal entre esses componentes para, cientificamente, comprovar qual a melhor estrada do mundo para conduzir. 

VIAJAR NO TEMPO 
Já se disse, mas nunca é demais repetir tudo o que a N222 tem para oferecer, incluindo o acesso à Grande Rota do Vale do Côa (GR45) que, ao longo de cerca de 200 quilómetros, permite acompanhar e entender o rio onde o homem ‘assentou arraiais’ há mais de 25 000 anos. A arte paleolítica existente no Parque Arqueológico do Vale do Côa é explicada no Museu do Côa, espectacular estrutura inaugurada em 2010, concebida pelos arquitectos portuenses Camilo Rebelo e Tiago Pimentel. 

Edifício perfeitamente integrado na paisagem – onde encontrámos almoço reconfortante - sobranceiro aos vales que unem o Côa e o Douro, e onde os mais de 300 mil visitantes registados desde a sua abertura, puderam ter uma visão da arte rupestre do Vale do Côa com ajuda das mais modernas tecnologias. 


Para lá da arqueologia, o Museu do Côa é, essencialmente, um museu de arte, abordando a expressão artística na compreensão das origens da civilização e da sua importância no ordenamento dos espaços vivenciais das sociedades pré e proto-históricas. E onde ressalta enorme rigor científico, como uma mostra explicativa dos ciclos de arte rupestre do Baixo Côa e Douro superior. Com obras dos caçadores-artistas do período Gravetense, quer dos últimos moleiros rupestres da Canada do Inferno, aqui estão patentes as mais diversas sensibilidades expressas na rudeza dos painéis de xisto que há milhões de anos moldam a geomorfologia regional, com mais de mil rochas trabalhadas pelo Homem dispersas por todo o vale. 

ALMENDRA, MUITO MAIS QUE UM PONTO FINAL 
Deixemos este belo espaço arquitectónico para trás, enquanto vamos aproximando da fronteira com Espanha. Estamos já em Almendra que sem títulos ou candidatura na UNESCO, não deixa, ainda assim, de exibir um riquíssimo património edificado, com casas, solares e monumentos que a tornam numa das mais bonitas vilas históricas de Portugal. Freguesia do município de Vila Nova de Foz Côa que, em 1849, tinha 2420 habitantes e que, segundo os Censos de 2021, conta apenas 386 residentes (sendo exactamente igual o número de homens e mulheres…) já foi sede de concelho entre 1298 e 1855. 

Vitalidade social e económica que sustentou assinalável importância histórica, geradora de casas como o Solar do Visconde de Almendra, também conhecido por Solar dos Viscondes do Banho, palácio barroco que albergou, por muitos anos, os viscondes de Almendra e, por casamento, os viscondes do Banho. Edifício palaciano de dois pisos, exemplar ditoso da arquitectura setecentista do interior português, conserva o seu austero estilo barroco que se revela nas janelas ‘rocaille’, com as típicas vieiras invertidas e a marcante varanda com balaústres. O brasão de armas da ilustre família, enquadrado por um frontão curvilíneo, permanece em cima da varanda. 


Curiosamente, o brasão nunca foi devidamente terminado de esculpir, sendo no entanto evidente o coronel (a coroa que encima o escudo) de Marquês. Marco histórico da localidade de Almendra, a par do Cruzeiro e da Capela de Nossa Senhora do Campo, que ficará registado na memória fotográfica deste evento, tela de excelência para uma moto que se presta à descoberta turística dos mais recônditos e surpreendentes locais. 

RUMO A ESPANHA
Com a fronteira luso-espanhola a ficar paulatinamente mais próxima à medida que a caravana se deslocava agora para sul, a passagem por Almeida revelou apenas uma pequena parte da imponência da fortaleza, que, com uma forma única de estrela de doze pontas, representa um dos mais espectaculares exemplares europeus dos sistemas defensivos abaluartados do século XVII. É, no entanto, muito mais antiga a História daquele que é actualmente o Concelho de Almeida, com vestígios de ocupação humana desde o Paleolítico, sendo conhecidos núcleos castrejos da Idade do Bronze e do Ferro. Existe, ainda, informação inequívoca da presença romana, embora seja no período medieval, sobretudo na época da formação da nacionalidade, que ganhou importância acrescida, pela localização no limite fronteiriço do território português e pela criação dos concelhos, como forma de garantir o povoamento da fronteira. 


A importância de Almeida foi reforçada com a assinatura do Tratado de Alcañices, em 1297, com a integração definitiva no Reino de Portugal dos territórios a este do Rio Côa, até então limite fronteiriço entre o Reino de Leão e o território português. Uma presença marcante na História que, por si só, obriga a um regresso atempado à praça-forte que é candidata à categoria de Património Mundial da UNESCO. Estatuto de referência universal que acompanhou esta viagem ao longo de toda a sua extensão em território português, do Centro Histórico do Porto, Ponte Luiz I e Mosteiro da Serra do Pilar, dos Sítios de Arte Rupestre no Vale do Côa ao passando pela Região Vinhateira do Alto Douro. E de Portugal nos despedimos através de Vilar Formoso, posto fronteiriço em funções desde 1859 e sempre muito movimentado ao longo de todo o ano. Ou não fosse, ainda e sempre, esta estrutura aduaneira inaugurada em 1961 pelo Presidente da República, Almirante Américo Tomaz, o ponto de passagem da maior parte do volume de importações e exportações nacionais realizadas por via terrestre. Além das mais de cinco milhões de pessoas que cruzam anualmente a linha entre a vila beirã e terras espanholas, seja por meios rodoviários ou através do comboio, pela Linha da Beira Alta, inaugurada em 1882. 

Local de forte carga histórica, por aqui passaram milhares de refugiados judeus com vistos de passaporte atribuídos por Aristides de Sousa Mendes, o Cônsul de Portugal em Bordéus, e também por aqui regressou a Rainha Dona Amélia para a primeira visita a Portugal, em 1945, depois do seu exílio em Inglaterra e França. 

PELA VIZINHA SERRA DE FRANCIA 
Já em solo espanhol e com o céu a escurecer e o termómetro a baixar, depois de 270 km em estradas portuguesas, o mapa da viagem conduziu-nos ao coração da salamanquina Sierra de Francia, e àquela que é, sem dúvida, uma das aldeias mais representativas da Espanha. La Alberca foi declarada local de interesse histórico e artístico em 1940, sendo a primeira localidade espanhola a conseguir esta menção. Tudo graças a uma malha urbana que que preserva como poucas os traços da idade média, como bem preservadas estão as suas tradições centenárias, transmitidas de geração em geração. Depois de uma viagem tão intensa de História e paisagens, nada como uma caminhada pelo intrincado labirinto de ruas e praças de La Alberca, com perspectivas surpreendentes em cada esquina. A arquitectura típica assenta, de forma natural, nos materiais mais abundantes na serra de Francia, juntando a solidez da pedra granítica e as trabalhadas madeiras de formas geométricas. Isto sem perder de vista os lintéis esculpidos com a data de fundação das casas, as diversas inscrições, sinais e anagramas religiosos, que se apresentam como uma bem visível profissão de fé. 


Com os andares superiores a salientarem-se em relação aos inferiores, os telhados dos dois lados da rua quase se tocam, criando um curioso jogo de sombra e luz ao longo de uma estrutura urbana intrincada, labiríntica, como que escondendo segredos centenários, que muitos assemelham a um bairro judeu. Destaque para a Plaza Mayor, ponto central de La Alberca, com as fachadas marcadas por duas fileiras de varandas, arcadas e colunas de granito, numa união secular das culturas cristã, islâmica e judaica. E foi aqui mesmo que nos deliciamos com os sabores e delícias gastronómicos do país vizinho. Era enfim hora de relaxar, jantar e conviver. 

[CONTINUA…]

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