Era uma vez um miúdo. Muito miúdo. Verão. E ao domingo de manhã, bem cedo, o miúdo descia a calçada na zona da mouraria onde morava, pela mão do pai. Pelo passeio da Rua do Ouro ansiava chegar ao Terreiro do Paço. O rio, largo. O barco, para a outra banda. E em Cacilhas, o velho autocarro que o levaria até à eterna Caparica e ao seu mar refrescante. Mas antes, na Cova da Piedade, quando o autocarro dava a única curva digna desse nome durante a curta viagem, os olhos do nosso garoto prendiam-se num sinal, uma placa, que indicava na direcção mais ou menos oposta à do petiz: “Algarve EN10”.
Não sei o que mais me fazia sonhar. A doce e vagamente exótica fonética al-gar-ve ou aquele número magico, “dez”, precedido do importante – pensava eu…. - “EN”. Que um dia soube significar “Estrada Nacional”.
A verdade é que por vezes somos traídos pela fonética, e a Estrada Nacional 10 não nos leva sequer ao Algarve. Mas a memória sobreviveu até hoje. Quando passo na zona ainda me lembro. Sempre. Esticava o pescoço até não puder mais, olhos postos naquela placa de pedra branca com letras a negro pintadas. O mistério. Sempre o mistério. O que estará para além da curva. Como será o caminho? A paisagem? A estrada? O destino?
“A estrada, a moto e o telefone esperto” começa aqui. E surge do sonho e do mistério. Passados tantos anos as questões persistem: como será o caminho? A paisagem? A estrada? O destino? Porque como um dia escreveu Saramago na sua obra-prima mais ou mesmo olvidada, Viagem a Portugal, “o fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”.
“A estrada, a mota e o telefone esperto” não pretende ser um conjunto de textos onde imperem os mais ou menos apalermados lugares comuns do género “Nacional 2, a route 66 portuguesa” ou “Nacional 222, a melhor estrada do mundo”.
“A estrada, a moto e o telefone esperto” pretende ser um conjunto de textos em modo western spaghetti 2.0. Sem o mau. E muito menos sem o vilão.
Uma estrada, uma moto e um mero dispositivo móvel no bolso, que ajude a perpetuar a memória. Simples! O viajante volta já.
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